Amigo ao Peito

Olga, a Soprano do Brasil

sexta, 23 de março de 2018

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O Brasil tem alguns talentos secretos. Esse mês será lançado um CD com remasterizações de um dos maiores, Olga Praguer Coelho. Quem? 

Falar de Olga é falar do violão da primeira metade do século XX, então vamos começar do início.

Fomos habituados a pensar que o violão era instrumento de vagabundos no início do século passado. Era mais ou menos, havia um movimento de violão clássico no qual as mulheres da sociedade eram as protagonistas. E entre essas se destacava Olga.

Nascida em 1909, ela era de família abastada e com vocação para ser diferente. Estudou violão com um professor negro, Patricio Teixeira. Ele ser negro é relevante, pois estávamos há pouco mais de 30 anos da abolição da escravidão. Uma moça da alta sociedade estudando com um negro! Pois ela não ligava a mínima para essas bobagens e seguia sua vida. Em dado momento seu pai resolveu interferir e ela foi defendida pelo médico da família, Dr. Miguel Couto (nome de rua e hospital no Rio de Janeiro). Ela foi amiga de muita gente que hoje é rua ou estátua...

Conversar com Olga era um prazer incrível. Numa festa, onde momentaneamente ela deixara de ser o centro das atenções (já com mais de 90 anos), subitamente ela exclama um “Ó!”; todos a olham e ela tira um livreto de sua bolsa:

— O passaporte de Villa Lobos! Como isso veio parar aqui?

Claro que ela sabia, e o documento foi imediatamente resgatado para ser entregue ao Museu devido.

Ela se casa com Gaspar Coelho, poeta e locutor de cinejornais. Uma pessoa muito especial, sempre presente em sua vida mesmo após a separação. Ela se envolve com o violonista espanhol Andrés Segovia, de quem seria companheira por mais de 20 anos e com quem teria dois filhos. 

Sempre tive uma tese que as mulheres na primeira fase da vida de Segovia foram responsáveis por seu crescimento musical. A primeira esposa o deu uma base para começar a voar, ele era um vulcão de velocidade e técnica; a segunda, uma pianista virtuose, o deu uma visão mais estruturada da música, e Olga, cantora, foi sua companheira da maturidade musical, onde ele fazia a música soar, respirar, seu apogeu artístico. Após a separação, por algum motivo houve um sensacionalismo barato sobre ela, não se sabe industriado por quem. Há suspeitas, ciúmes, etc, o fato é que tentaram de todas as formas macular sua reputação. 

Mas até agora não disse o principal, que Olga era cantora. Se acompanhava ao violão de forma única (foi ela que convenceu Villa-Lobos a escrever o arranjo da Ária das Bachianas Brasileiras 5 para violão solo), foi ela a primeira artista a subir num palco com cordas de nylon. E era uma cantora fenomenal. Um alcance vocal invejável, e uma elegância de fraseado que poucas vezes se viu. Mesmo no repertório mais folclórico que era moda nos anos 1930 e 1940 ela se destacava, um controle de respiração que poucas cantoras no mundo tiveram.

Gravou LPs, fez excursões pelo mundo, foi representante do governo brasileiro nas Olimpíadas de 36:

— Acho que Getúlio era simpático ao nazismo, sim; o camarote brasileiro era ao lado do de Hitler. Goebbels era estranho, tinha um olhar frio e um defeito no pé, capengava muito. Já Mussolini, diziam que era zangado, mal humorado, mas comigo foi muito gentil...

Contava, coquete, fingindo não saber que tinha sido uma mulher belíssima, capaz de derreter o coração de ditadores sanguinários.

Olga nos deixou aos 98 anos. Nas festas com o pessoal de violão eu era seu motorista oficial, com enorme prazer. Sempre atrasada, sempre sendo o ponto alto de qualquer reunião:

— Andrés (Segovia) tinha pânico quando Salvador (Dali) aparecia. Uma vez ele quase morreu, para brincar com Andrés entrou no recital dele vestido com um escafandro. Ele começou a se mexer, parecia que estava dançando, quando percebi que ele havia fechado o capacete e estava sem ar, desesperado. Quase morreu!

Inteligente, gentil, genial, tive a honra triste de participar de seu funeral, depositando com seu filho Miguel suas cinzas nas águas da Baía de Guanabara. No mesmo dia, publicaram numa rede social uma foto do dirigível Zeppelin sobre o Rio, sobre o ponto onde ancoramos para a cerimônia. 

Pois ela estava dentro do dirigível quando a foto foi tirada. Olga sempre nos surpreende!


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