Amigo ao Peito

Obrigado, Henrique Pinto!

sexta, 22 de junho de 2018

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Será lançada brevemente a biografia do professor Henrique Pinto, um dos maiores nomes da história de nosso violão. Resolvi colocar aqui o meu capítulo, o livro constará de depoimentos de ex-alunos, coisa que tenho a honra de ser. Entre estes, há Fabio Zanon, Duo Siqueira Lima, Brazil Guitar Duo, Edelton e Everton Gloeden, Sidney Molina, Clemer Andreotti, Paulo Porto Alegre, Angela Muner, Paulo Pedrassoli, Barbieri... Não dá para citar todos. A enorme maioria dos maiores nomes do violão brasileiro passou por suas mãos.


Sou luthier, mas durante algum tempo estudei violão, sonhando em ser concertista. Em determinada época estava desanimado, más experiências haviam tirado meu prazer com o instrumento. Dos principais, aqui no Rio havia o Léo Soares, que não estava aceitando aluno, e o Jodacil Damaceno estava em Uberlândia. Aí alguém me disse:

–Tenta ter aula com o Henrique!

Bem, minha grana sempre foi curta, isso implicaria numa ida periódica a São Paulo, mas que diabos: Vamos tentar!

Longas negociações, já que hora vaga com ele era coisa difícil, interferência do Sergio Abreu, rogos e súplicas de minha parte, e pronto: 7 da manhã de sábado seria minha aula!

Quando se tem 20 e poucos anos as coisas são mais simples: eu pegaria um ônibus no Rio à meia noite, chegaria em Sampa às 6 e pouco, tomaria um café e pegaria o metrô para Vila Mariana, onde ficava seu estúdio. Fiz. Cheguei, e foi amor à primeira vista: aquele cidadão feliz me cativou de cara. E a melhor definição que fiz e faço dele é essa: um cara feliz. Ele AMAVA dar aula, se entregava por completo, e estava ali, todo pimpão, a uma hora totalmente incivilizada como 7 horas.

De cara, como disse, nos demos bem. Aliás, não consigo imaginar ninguém que não se desse bem com ele, o homem era simpático demais. Me recebeu como se eu fosse alguém, me deixou à vontade e me disse para esquentar a mão, enquanto lia uns papéis. Comecei a tocar algo, e ele, de cabeça baixa, sem me olhar:

– Dedo errado...

Ele devia fazer isso com todo mundo para impressionar, e fazia bem: dava muito certo! Fiquei, então, devidamente impressionado e constatei que ele tinha toda razão, o dedo estava errado mesmo. Então sentou-se à minha frente e pediu que tocasse algo. Toquei. Pediu que tocassse outro algo. Toquei. Pediu que tocasse outro algo, mas mais rapidinho. Toquei.

– Ô, Ricardo, você tá bem, viu? Mas tem uns probleminhas...

Em seguida, dissecou cada nota que toquei, me virando ao contrário. Ouvi falar que Abel Carlevaro (violonista e didata uruguaio, 1916 - 2001) – com quem Henrique estudou – fazia algo parecido:

– Te felicito, tiene muchas condiciones!

E descascava o sujeito...

No caso do Henrique, quando a gente se perguntava se havia acertado ao menos UMA nota, ele falava de um jeito que a gente sabia que precisava trabalhar, mas que daria tudo certo. Essa era, aliás, a característica básica dele: entusiasmo. Contagiava a gente, a gente acreditava que tinha jeito, que não tinha duas mãos esquerdas. 

E assim foi a primeira aula. Seguiu-se o que acabou sendo uma rotina, eu assistia às outras aulas que ele dava, até o meio dia, quando saíamos para almoçar. “Almoçar” é modo de dizer, ele não comia comida, comia porcaria. Acabávamos sempre comendo coxinha de galinha, que ele enchia de porcarias maiores por cima, molhos, o diabo. Na época, jovem, aguentava bem; se fizer isso hoje, tenho que ir direto para a UTI. Ele ADORAVA junk food. Já o vi comendo em restaurantes, alguns de boa qualidade, mas nunca com a expressão de prazer que tinha comendo aquela coxinha engordurada e massuda. 

As semanas se seguiram, a rotina se mantinha, e eu notava que a minha aula era diferente da dos outros. Eu ficava quieto, assistindo, mas ele sempre assinalava coisas. Ao longo dos anos elucubrei uma teoria a respeito, que pude confirmar em nosso último encontro. Daqui a pouco falo nisso. O fato é que ele me explicava muitas coisas que fazia, atitudes que tomava, quando o aluno saía eventualmente ele repassava algum ponto... Depois da gororoba, eu pegavo o ônibus e voltava para o Rio. Foi um período muito feliz, de um enorme aprendizado, de música, violão e vida, mesmo descontando a tragédia gastronômica. Com o tempo, diversos alunos do Rio tinham aula com ele, e essa criatura generosa logo propôs: ao invés de Maomé ir à montanha, a montanha viria a Maomé: ele viria ao Rio, sairia muito mais barato para todos. E assim foi feito. 

Não durou muito, não sei o que aconteceu, mas uma das vezes foi memorável: ele chegou de véspera, no Rio estava a violonista americana Alice Artzt, grande amiga de todos, e houve um jantar. O jantar se estendeu, naquele Rio sem violência, e fomos embora perto das 4 da manhã. Minha aula, como sempre, seria a das 7. Resolvi não dormir. Mas fiquei preocupado com ele, ofereci desistir da aula, mas ele sequer cogitou disso.

Na hora marcada estava no prédio, casa do violonista Paulo Pedrassoli. Descobri que o elevador não estava funcionando, o que significava 20 andares de escada. E soube também que o elevador não funcionava havia algumas horas, ou seja: o pobre Henrique teve que fazer o mesmo percurso. Mas fui, acendi um cigarro (fumava) e subi, bravamente, bufando e carregando o estojo do violão que pesava um pouco a mais a cada lance. Cheguei, fiquei alguns minutos procurando ar, e toquei a campainha. A querida Dona Ruth, mãe do Paulo, me recebeu com o carinho de sempre e avisou: o professor tinha acabado de deitar. Fiquei constrangidíssmo, mas antes que fizesse algo, veio a voz lá de dentro: 

– Ricardo, já estou indo, vai aquecendo!

Ele tinha uma característica, que descobri numa das vezes que fiquei em São Paulo mais tempo: depois do almoço, ele dormia 15 minutos. Cravados. Deitava no chão, cruzava as mãos no peito e fechava os olhos, dormindo imediatamente. Exatos 15 minutos depois ele levantava, como vampiro ao anoitecer, totalmente recomposto. Pois nessa noite ele não tinha dormido mais que isso, e me deu uma aula com a mesmíssima qualidade de sempre. O homem era uma máquina de lecionar. 

Um tempinho depois começou um seminário que ele organizava na Faculdade Mozarteum. Era época do Plano Cruzado, que fez sucesso no início. O resultado é que, ao invés dos esperados 20 ou 30 estudantes, havia mais de 100. Todo mundo dormindo no ginásio. Coberto, mas aberto nas laterais. Inverno de São Paulo. O mais rigoroso dos últimos anos...

Estava frio. MUITO frio. Para piorar, a água quente “enguiçou” (tenho certeza que a administração da faculdade desligou a eletricidade para economizar, era gente demais). E eu não vivo sem banho. Entrei em negociações com a moça da cantina, que me fornecia uma panela de água fervendo para um banho de canequinha. Mas era tão frio que eu ficava DENTRO da panela, o que, creio, dava um gosto todo especial ao feijão que nós comíamos (“nós”, não; depois disso passei a evitar o feijão feito ali). Era um horror. Henrique trouxe de casa um aquecedor para colocar no palco, de forma a não congelar os executantes (entre as atrações, os então iniciantes Fabio Zanon e Paulo Martelli), uma experiência congelante. E como o banheiro ficava longe, tínhamos que atravessar uma quadra descoberta, eu sempre levava uma garrafinha de guaraná para, ahn, não precisar sair na quase neve em caso de xixi na madrugada. Um dia, tendo sido usada, ao acordar não estava do meu lado. Fico especulando o que teria acontecido...

Mas foi, no fim das contas, uma experiência muito feliz. Henrique coordenava tudo com mão suave, as coisas andavam muito bem, junto com os demais professores, Angela Muner, Orlando Fraga e Giacomo Bartoloni. A capacidade de mobilização que ele tinha era de outro mundo. Sem contar a devoção: aquilo dava um trabalho terrível, e o lucro financeiro não devia ser nada significativo. Era amor ao violão e preocupação com os alunos. Mas se fôssemos falar disso com ele, ele simplesmente mudava de assunto e ia comer uma coxinha.

A vida foi em frente, e circunstâncias diversas nos afastaram fisicamente. Trocávamos e-mails com alguma frequência, ele escreveu palavras muito gentis na apresentação de um livro meu que acabou não saindo, mas pessoalmente  ficamos muitos anos sem nos ver. Isso acabou em 2009, quando ele veio ao Rio e nos encontramos na casa de Sergio Abreu. Da última vez que havíamos nos visto, eu pesava 60 quilos; dessa, eu estava com um pouco mais de 100. Ele abriu a porta, me olhou de alto a baixo e disse:

– Ô Ricardo, você está grande, hein?

E nos abraçamos um abraço de mais de 20 anos. Tentei forçar sua memória para desvendar o mistério de minhas aulas diferentes. Na minha ideia, ele estava me preparando não para ser concertista, mas para ser professor. Perguntei isso, e ele confirmou. Mas de onde veio essa ideia?

– Ô Ricardo, você estava meio velho para ser concertista, e vi que você tinha jeito com as palavras, era observador, ia ser um bom professor se quisesse. 

Não sei se dei certo, mas adoro dar aulas. E nelas – mesmo em aulas de luteria – uso as técnicas que aprendi com o Henrique. Atenção total no aluno, jamais desestimular, procurar os defeitos os minorando e mostrando soluções, realçar as qualidades, e de vez em quando sacar um truque da manga, para segurar a atenção e deixar um pouco de magia no ar.

Magia... É, acho que essa é a palavra que define ter aula com ele. Tudo era possível quando ele estava sentado na frente da gente e mostrava como era bom fazer música, como a gente era privilegiado de tocar um instrumento tão bonito. E eu tinha plena certeza do quanto era privilegiado de tê-lo ali, na minha frente, ajudando a escrever a história da minha vida. 

Muito mais bonita e completa graças a ele. Obrigado, Henrique!


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