Colunista Convidado

Guinga reluz nas vozes de Mônica Salmaso e Izabel Padovani

quinta, 13 de dezembro de 2018

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Quando a monumental obra do violonista e compositor Guinga começou a ser desvelada, o guichê do mercadão já estava fechado para estetas de seu calibre. O carioca Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, seu nome na identidade, equilibrou-se ainda por longo tempo como dentista profissional e artista quase amador, já que não havia brechas sustentáveis no show bizz caboclo para sua linguagem autoral densa e elaborada, embebida tanto em Villa Lobos quanto em Pixinguinha. Finalmente reconhecido graças a cauda longa de sua criação, o agora ex-dentista e artista militante tem seu repertório abordado por duas grandes cantoras, por acaso, ambas vencedoras do seleto Prêmio Visa. A paulistana Mônica Salmaso desembarca o DVD “Corpo de baile” (SESC SP), registrado em espetáculo no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, em setembro de 2015. E a campineira Izabel Padovani, que estudou canto e flauta doce e alternou-se entre o Brasil e a Áustria, divide o CD “Passarinhadeira – Canções de Guinga” (Independente/Tratore) com a Orquestra à Base de Sopro de Curitiba, em gravação realizada na Capela Santa Maria, na capital paranaense, em julho de 2017.

No primeiro, Mônica aborda uma parte recôndita da obra do autor, em sua parceria inaugural com Paulo Cesar Pinheiro, por algum tempo abandonada após o fim da dupla. Ela admite que demorou anos para encontrar o tom certo para desvelar este “baú do tesouro”. Além das imagens integradas do diretor e cineasta Walter Carvalho, responsável pelo vídeo cenário com Bacco de Andrade, a cantora cercou-se de um grupo instrumental camerístico de alto refino. Ele é integrado por Nelson Ayres (piano, acordeon), Paulo Aragão (violão), Nailor Proveta (clarinete), Teco Cardoso (sax barítono, flautas, pifes), Neymar Dias (contrabaixo e viola caipira) e o Quarteto Carlos Gomes, de Claudio Cruz (1º. Violino), Adonhiran Reis (2º. Violino), Gabriel Marin (viola) e Alceu Reis (violoncelo). Com eles, a cantora a bordo de sua emissão intensa e levemente rouca, trafega por valsas de várias procedências, como “Sedutora”, “Senhorinha”, “Fonte abandonada”, “Porto de Araujo”, “Corpo de baile”, “Nonsense”, de letra ilusionista, que emula o idioma francês. E mais, fado (“Navegantes”), o “Bolero de Satã” (que recebeu uma memorável versão inicial da improvável dupla Elis Regina e Cauby Peixoto, em 1979), e o esfuziante “Rancho das sete cores” (“são colombinas/ iguais as Mimosas Cravinas/ trazendo um arco-íris no seu estandarte”). Em “Violada”, um viés alt-caipira atiçado pela endiabrada viola de Neymar Dias e a execução em pife duplo de Teco Cardoso.

Por sua vez, a meio soprano Padovani, em atmosfera sinfônica, flutua entre sopros da estupenda Orquestra de Curitiba, formada em 1998, especializada em música brasileira. Ela é formada por Sebastião Interlandi Junior e Clayton Rodrigues (flautas transversal e piccolo), Jacson Vieira e Otávio Augusto (clarinetas), Sérgio Albach (clarone e clarineta, direção artística e regência), Victor Gabriel Castro (sax alto, clarineta e clarineta contralto), Gabriel Schwartz (sax tenor e flauta transversal), Sérgio Freire (saxes soprano, tenor e barítono), Ozeias Veiga e Douglas Chiullo (trompetes e flugelhorns), Rodrigo Viccaria Brasão (trombone), Bruno Brandalise (tuba e eufônio), Vinicius Bastos Gomes (piano), Mario Conde (guitarra), Thiago Duarte (baixo elétrico e acústico), Luis Rolim e Denis Mariano (bateria e percussão). O repertório traz duas faixas comuns ao DVD de Mônica, “Fonte abandonada” e “Porto de Araujo”, esta com direito a sopro emulando apito de navio. Mas adiciona também duas da dupla Guinga/ Paulo Cesar Pinheiro, não incluídas no disco da paulistana, a saltitante “Saci” com bucólica introdução de flautas e a faixa título.

Na valsa “Cine Baronesa”, sem letra, a voz de Izabel dialoga com clarineta e piano, em diáfano arranjo de André Mehmari. A música é parceria de Guinga com Aldir Blanc, que também fornece a poesia picaresca do rodopiante “O coco do coco” (“em rala-rala é que se educa a molhadinha/ se tu não peca, meu bem/ cai a peteca, neném/ vira polícia da xereca da vizinha”), a aterrorizante “Par ou ímpar” (“conta que é torturador/ não é nada pessoal/ se convocado outra vez/ volta e mete o pau aí”) e o celebrante frevo “Vô Alfredo” (“canta o pau, acorda o zabumba/ freme freme o sertão”). Outros parceiros letram Guinga como a surpreendente Simone Guimarães de “Desavença” (“deixa menina, minha viola/ que todo canto que faço é teu/ se descombina eu vou-me embora”) e “Capital” (“arrumam zica em fila de hospital, carnaval/ esse direito é constitucional/ perante Deus somos todos iguais”). E o Zé Miguel Wisnik da desdobrada “Canção necessária”: “Lancei meias palavras/ em que eu evitava/ que queria tanto/ mas no que eu sussurrava/ havia fogo e lava/ prometendo mais”. Esnobado pelo mercado predatório, Guinga reluz em jóias de ourivesaria perene como estas de Mônica e Izabel e seus músicos parceiros.


Por: Tárik de Souza


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