Música

ALDIR BLANC: De como Chiquita Bacana entrou na movimentada vida do Zorro

domingo, 02 de setembro de 2018

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Balas ricocheteiam por perto, mas o valoroso soldado nem se abala. Deitado com um lápis de cor, aliás, com um cigarro na boca, ele dorme na pontaria até enxergar o olho do inimigo. E só então atira, sem risco de desperdiçar sua escassa munição.

De onde será que esse menino tira tanta imaginação?

Em parte, do gibi. Aldir Blanc Mendonça, nascido em 2 de setembro de 1946, poderia ter ficado famoso na Vila Isabel (onde morou até os doze anos) ou no Estácio (para onde se mudou por essa época) como o maior colecionador de estórias em quadrinhos das redondezas.

Ele era muito inteligente (teve ótimo desempenho em todo o curso primário), mas, no ginásio, as coisas engrossaram um pouco. Quase não havia tempo para estudar: chegando em casa, ele precisava tirar a camisa, vestir um calção, colocar uns discos de 78 rpm na vitrola e ir ao encontro do Homem de Borracha, do Capitão América (na época, ainda com seu companheiro Buck), do Coringa, do Fantasma, do Príncipe Namor, de Hopalong Cassidy. E Silver corria pela planície, montado pelo Zorro, enquanto Chiquita Bacana fazia o fundo musical.

Aliás, Aldir acostumara-se aos fundos musicais antes mesmo de aprender a ler. Com mais ou menos quatro anos, ouvira falar de Noel Rosa (o mitológico Poeta da Vila) e de suas composições; um pouco mais tarde, arranhara na velha Telefunken do avô a coleção de discos da família, que contava sobretudo com sucessos carnavalescos.

Como músicas e gibis não eram incompatíveis com os estudos, Alceu Blanc Mendes e Helena Aguiar Mendes (os pais) não faziam objeção, e os hábitos de leitura de Aldir só começaram a mudar num seu aniversário:

Alguém me deu um livro, e eu achei um presente horrível, demorei pra começa a ler. Mas aí eu percebi que era um troço melhor que gibi. Me tornei um devorador de livros. Até durante as refeições, quando meu pai não estava, eu ficava lendo.

Já morando no Estácio, Aldir resolveu participar ativamente dos fundos musicais. Construiu uma bateria de latas velhas para acompanhar o que ia pela vitrola. Nessa horas, a mãe, agindo em legítima defesa, saía para visitar umas tias que moravam a pelo menos dois quarteirões da casa. Finalmente, numa tentativa de ao menos tirar o som metálico da “música” de Aldir, a família resolveu lhe dar uma bateria de verdade. O garoto quieto, que preferia ficar em casa lendo a frequentar festas e bailinhos, passou a ser notado pela vizinhança: ainda era de pouco falar, mas batia nos tambores e nos pratos com força e alguma ciência.

Mais ou menos nessa época, o primo Dininho convenceu-o a frequentar ensaios de escolas de samba. Aldir gostou e começou a aparecer sempre (para alívio dos ouvidos da vizinhança). Nos terreiros das escolas, experimentava os primeiros cigarros, as primeiras cervejas. E chegou até a fazer uns sambas, cujas letras falavam de um preto favelado que cantava a própria vida.

Quando estava terminando o científico, Aldir formou com alguns dos colegas um conjunto de bossa nova, que tocava em casa, animava bailes de clubes nos fins de semana, e que acabou na televisão, acompanhando crianças que cantavam rock’n’roll. Mas aqueles graciosos monstrinhos gritando em inglês não chegavam propriamente a sensibilizar os “artistas” estreantes.

Cesário, o pianista, perdia a paciência com facilidade e tentava atirar um ou outro pela janela. Daí, acabamos demitidos.

A música conviveu com o estudo de medicina: os festivais universitários e, mais tarde, o advento do MAU (Movimento Artístico Universitário) forneciam um clima propício à composição. Nas reuniões do MAU no bairro da Tijuca, Aldir teve por companheiros outros músicos estudantes, como Ivan Lins, Luiz Gonzaga Júnior e César Costa Filho.

No fim da década de 60, conheceu em Paquetá o excelente violonista Sílvio da Silva Júnior, e lhe mostrou algumas de suas composições.

Ele achou as letras ótimas e as músicas muito ruins. Começamos a trabalhar em parceria e surgiu um monte de coisas. Uma delas foi Amigo é pra essas coisas, que tirou o segundo lugar num festival universitário.

A parceria, contudo, não durou muito: Sílvio mudou-se para Portugal. Pouco depois, Pedrinho, um amigo de Aldir, apresentou-o a uma rapaz de Minas (um tal de João Bosco, que também gostava de música), e os dois se deram muito bem. Nas férias, andavam juntos pelo Rio de Janeiro, jogavam sinuca, cantavam. Durante as aulas, Aldir ficava com as músicas de João, colocava letra, mandava cartas. Um dia apareceu em Ouro Preto com os versos de Angra e Agnus sei.

Esta composição mereceu sorte: foi escolhida, em 1972, para ser gravada numa promoção feita por um pasquim carioca. O disco divulgou-se pelo país inteiro e a dupla João-Aldir criou coragem para mostrar seus trabalhos a uma intérprete famosa: Elis Regina.


ELIS REGINA: Da tribo de Elis Regina

Minha primeira gravação com músicas de Aldir e João aconteceu em março de 1972. Eu já conhecia o trabalho de Aldir com César Costa Filho e Sílvio da Silva Júnior, e queria gravar alguma coisa dele. Quando vi o que ele tinha feito com João Bosco, me apaixonei logo de cara.

Sempre achei que a função de um artista fosse a de relatar sua época com a maior sinceridade possível. E é exatamente esse o trabalho que os dois vêm fazendo. Uma obra dura, pensada, sem nada de circunstancial. Como deve ser todo e qualquer trabalho maduro. João Bosco e Aldir Blanc são da minha tribo. Aldir é um gênio.

Há pouco tempo atrás, eu estava cansada, pensando em parar. Aí pintou Aldir, começou a conversar, contar o que tinha feito, discutir comigo. Desses papos acabou nascendo um dos trabalhos mais importantes da minha carreira, o show Falso brilhante (nome, aliás, tirado da composição Dois pra lá, dois pra cá, da dupla). No dia do dilúvio, Aldir vai estar na minha arca.

ELIS REGINA


JOÃO BOSCO e ALDIR BLANC: De frente pra vida

A dupla se auto-identificava como definitiva:

Em Agnus sei, Aldir conseguiu captar direitinho uma revolta que eu tinha contra determinados símbolos religiosos. Ele sacou muito bem a jogada da música.

Após a gravação de Agnus sei na coleção de discos de “O Pasquim” (tabloide de circulação nacional) e o apoio encontrado em Elis Regina, só restava a profissionalização. Assim, no início de 1973, João Bosco mudou-se para o Rio, já contratado para gravar um LP que incluiria músicas dele e de Aldir.

Como nos tempos em que ainda estavam na faculdade, ambos procuraram, inicialmente, levar uma vida dupla, compatibilizando o estudo (agora profissão) e a atividade musical. O engenheiro João conseguiu empregar-se num escritório técnico e o psiquiatra Aldir abriu seu próprio consultório.

No entendo, isso só durou até que o horário das gravações começasse a coincidir com o do outro trabalho. Então, decidiram dedicar-se inteiramente à música, encerrando precocemente suas carreiras na engenharia e na psiquiatria.

De saída, tal decisão mostrou-se altamente deficitária, pois esse primeiro LP (no qual João Bosco também assinava parcerias com Cláudio Tolomei e Paulo Emílio) não fez sucesso. E, consequentemente, rendeu muito pouco dinheiro. João e Aldir passaram a viver de adiantamentos da gravadora, uns pingados de direitos autorais e shows (com Aldir tocando tumbadora no conjunto que acompanhava João).

Com o convívio diário no trabalho, o entrosamento da dupla foi aumentando. Segundo Aldir, João se acariocava, enquanto ele próprio aprendia a agir de modo um pouco mais mineiro.

Aldir casou-se com Ana (e tiveram uma filha, Mariana), e João com Ângela, que ele conhecera em Ponte Nova. Chefes de família, trabalhadores vigorosos e sempre em contato, suas composições passaram a fluir ainda mais, ampliando-se em quantidade e qualidade.

Conhecemos, eu e o João, pessoas bem diferentes, em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Mas, nas músicas e letras que fazemos, as personagens de quem eu falo são parentes das que ele conhece ou conheceu.

A poética de Aldir foi se voltando para essas figuras suburbanas que tanto ele quanto João conheceram e das quais aprenderam a gostar: a virgem fanada de Bodas de prata (“É o tempo, Maria,/ Te comendo feito traça/ Num vestido de noivado”); ou as vítimas e os curiosos dos desastres da cidade grande, como em Fatalidade: balconista teve morte instantânea (“Pela pista fatal da Avenida Brasil/ Ela volta e tem direito/ A um menino de paisagem./ Com um filho na barriga,/ De que lado da avenida/ Ficará a vida/ Dela?/ Luz lilás, arrependida/ Ou sumida/ Na favela?”), tema que voltaria a ser enfocado mais tarde em De frente pro crime (“Veio camelô vender anel, cordão, perfume barato,/ E baiana pra fazer pastel e um bom churrasco de gato” para os desocupados que observam um corpo estendido no chão da madrugada).

O sucesso chegou em 1975: Dois pra lá, dois pra cá, bolerão mesclado de irônica nostalgia (“Sentindo frio em minh’alma,/ Te convidei pra dançar./ A tua voz me acalmava:/ São dois pra lá, dois pra cá”), e Kid Cavaquinho (“Ói que foi só pegar no cavaquinho/ Pra nego bater./ Mas se eu contar o que é que pode um cavaquinho,/ Os home não vai crer./ Quando ele fere, fere firme,/ E dói que nem punhal,/ Quando ele invoca até parece/ Um pega na geral”).

Essas primeiras composições de êxito nacional foram um estímulo para que João e Aldir ampliassem sua produção, sempre desligada de qualquer gênero musical específico.

Nós fazemos simplesmente uma música. Os outros é que a analisam. Para mim, o que eu faço é só uma letra. Para os outros, pode ser uma redondilha, versos livres, rimas ricas ou pobres, etc. João faz uma melodia. As pessoas rotulam: “É tango, é bolero, é rumba”. Na verdade, a gente faz essa variedade de ritmos porque, no fundo, não está preocupado em fazer gênero algum. Quem dá o nome são os ouvintes.

Para os compositores, é tudo a mesma coisa, parte da mesma geleia geral que os envolve (o “furdunço”, no dizer mineiro de João Bosco), e da qual os artistas também fazem parte.


 Fonte: texto extraído do LP “História da Música Popular Brasileira: João Bosco e Aldir Blanc”.


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