Supersônicas

Caixa Gil anos 70 é viagem na máquina do tempo

por Tárik de Souza

sexta, 06 de outubro de 2017

Compartilhar:

A caixa de três CDs duplos “Gilberto Gil ao vivo (Anos 70)”, de ótima qualidade técnica - rara para a época no registro de shows -, produzida pelo pesquisador Marcelo Fróes, do selo Discobertas, especialista na obra do baiano, supervisão de, Bem Gil, filho do artista, vai muito além da arqueologia. Opera como uma poderosa máquina do tempo. É possível tomar o pulso daquela década – a do desbunde e da contracultura no auge, batendo de frente com a ditadura militar – a partir das intensas e longas viagens musicais das apresentações. Após sua prisão junto com Caetano Veloso, no final dos 60, e o exílio compulsório em Londres, onde chegou a gravar um disco para o mercado local, ele reaparecia na excursão “Gilberto Gil em concerto”, cujos espetáculos, dias 11 e 12 de março de 1972, no teatro João Caetano, no Rio, originaram o primeiro dos CDs. No repertório, composições que entrariam no álbum emblemático “Expresso 2222”, como a faixa título, e mais “Back in Bahia”, “O sonho acabou”, “Oriente” e as alheias “Sai do sereno” (Onildo Almeida), “O canto da ema” (Alventino Cavalcanti/ João do Vale/ Ayres Vianna) e “Chiclete com banana” (Gordurinha/ Almira Castilho). A bordo de uma banda poderosa, com o gênio da guitarra Lanny Gordin, Perna Fróes (teclados), Bruce Henry (baixo) e Tutty Moreno (bateria), ele embrenha-se por improvisos que chegam a ultrapassar 18 minutos, na releitura heavy rock do samba “Aquele abraço”. Há especiarias como “Brand new dream”, que entraria num segundo disco londrino nunca realizado, uma releitura da anárquica “Cultura e civilização”, já gravada por Gal Costa, a tresloucada “Madalena (entra em beco sai em beco)”, que ele gravaria mais adiante e o arguto mantra “O bom jogador (não engana a geral”) repetido à exaustão.  

O segundo CD, intitulado a partir de uma inédita, a macrobiótica “Umeboshi” (“é fruto da flor/ como a flor de lótus/ é uma bomba poderosa/estimulante do apetite”), foi registrado no alternativo teatro Opinião, no Rio, em abril de 1973. Já traz o hit “Eu só quero um xodó” (Dominguinhos/ Anastácia), outra face do compacto “Meio de campo” (“prezado amigo Afonsinho/ (...) a perfeição é uma meta/ defendida pelo goleiro”), de menor sucesso e maior ressonância. Da banda anterior, resta apenas o baterista Tutty, agora ao lado de Rubão Sabino (baixo), Aluizio Milanês (teclados) e Chiquinho Azevedo (percussão). O cardápio serve da irônica “Essa é pra tocar no rádio”, a “Doente morena” (parceria com Duda Machado), “Iansã” (com Caetano Veloso, desapropriada por Bethânia), “Ladeira da preguiça”, “Cidade do Salvador”, “Duplo sentido” e a obra prima de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, “Imbalança”. Há uma homenagem do solista a Edy Star (“Edith Cooper”), cuja assinatura surpreende ao lado de Gil, na clássica “Procissão”.     


Só, com o violão e longas histórias que conta antes de cada música, o terceiro CD, “Ao vivo na USP”, de maio de 1973, foi realizado em sala de aula por três horas, numa ocupação da faculdade, que lutava por justiça após o assassinato pela ditadura do estudante Alexandre Vannucchi Leme. Além do repertório, que já vinha cantando em outros shows, ele discorre sobre a saga do afoxé com esse nome - então em processo de extinção - “Filhos de Gandhi”. Desvela “Preciso aprender a só ser” (réplica a “Preciso aprender a ser só”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle), revive “Domingo no parque” e “Objeto sim, objeto não”. Define “Back in Bahia” como “’Aquele abraço’ ao contrário”; redefine “Chiclete com banana” (“colonialismo às avessas”) e hesita em cantar “Cálice”, feita com Chico Buarque, alegando “desconhecer a parte da letra do parceiro”. Mas alguém da platéia a fornece, e a “proibidona” pela ditadura é entoada duas vezes. Ele abre uma série de sambas, “Senhor delegado” (Antoninho Lopes/Jaú), “Eu quero um samba” (Haroldo Barbosa/ Janet de Almeida) com “Minha nega na janela”, entusiasticamente aplaudida pelos politizados estudantes. Hoje seriam crucificados como politicamente incorretos, pelo humorismo racista da letra, que impede o próprio autor, Germano Mathias (com Doca), de voltar a ela em seus shows atuais. Os tempos mudam – para o bem e o mal. E urge documentá-los. 


Fonte da Imagem: http://bit.ly/2z33AjC 



Comentários

Divulgue seu lançamento