Amigo ao Peito

Egberto Gismonti - 7 décadas +1

quarta, 05 de dezembro de 2018

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Minhas reminiscências com Egberto Gismonti fizeram sucesso, então mais algumas.


*Egberto gostou de um sapato, super macio, descobriu que era especial para diabéticos, o que ele não é, e foi à loja onde são fabricados e vendidos.

-Queria dois pares, têm marrom?
-Não, só preto.
-Mas não tem nenhuma outra cor?
-Não senhor… é pra diabético!

Então tá.


*Ele conta nos shows que quando começou a fazer sucesso popular, com a música Palhaço, sua mãe e sua tia Hebe foram assisti-lo no Circo Voador, Rio de Janeiro. Tailleur, bolsas seguras debaixo do braço, coques apertados, num cantinho ao lado do palco... Entre uma música e outra a galera pedia: Palhaço! Palhaço! Para valorizar ele não tocava, ia postergando, até que tocou, o teatro veio abaixo. 

Tudo acabado, encontrou as parentas, que passaram incólumes pelas fumaças marijuanescas do teatro, sequer perceberam. Gostaram?

-Ah, meu filho, foi lindo, mas essas pessoas são MUITO mal educadas!
-Por quê?
-Ficaram te chamando de palhaço o tempo todo!


*Não dá para falar de Egberto sem falar do tio Edgard, seu mentor e guru. Regente da banda, ensaiava na praça quando um de seus músicos passou para avisar que não tinha certeza se poderia aparecer para ensaiar. Disse o sábio:

-Se ocê vier, melhora; se não vier, continua bão.


*Em Minas, show à noite. Almoço, conversa, aparece, de surpresa, o gigante Nivaldo Ornellas. Se abraçam, Nivaldo diz que vai assisti-lo à noite, Egberto sugere:

-Vamos tocar uma juntos?

Pode ser, claro, qual, aquela, aquela qual, a que a gente tocou há uns 10 anos não sei aonde, ah, tá, qual o tom mesmo, Mi bemol, maravilha, a gente toca. Senta aí, vamos almoçar.

E isso foi todo o ensaio. Durante o show, Nivaldo sobe ao palco e acontece a mágica de sempre. 


*Teatro lotado, orquestra, Egberto solando ao violão e Leo Brouwer regendo. A orquestra para e Egberto toca a cadenza, um longo improviso. A música era em Ré. Ele improvisa, modula para Ré bemol, de pura maldade, e volta ao tema, para a orquestra entrar (explicando: uma brincadeira perigosa, a orquestra entraria fora do tom). Leo percebe e, sem que a plateia veja, faz sinal de “não”, balançando o dedo indicador. O solo continua, ele passa para Mi bemol, novamente Leo faz o gesto de “não”. Rindo. Egberto resolve entregar o tom correto, e antes de chegar ao fim Leo já está em posição de mandar a orquestra tocar. 

Dois malucos irresponsáveis se comunicando por telepatia – e música


*O telefone toca. É uma prima do Carmo:

-Egberto? Mamãe faleceu.
-Não me diga uma coisa dessas, que horror...
-É, o médico acabou de sair.
-Bem, eu vou ajeitar umas coisas, pego o carro e vou praí.

Começa a se arrumar, o telefone toca de novo. A mesma prima:

-Egberto? Mamãe tá fritando kibe.
-Como é?
-Acordou, nem soube que morreu, viu o monte de gente em casa e foi fritar kibe...
-Que coisa...


O tempo passou, poucos anos, o telefone toca. É a mesma prima.

-Egberto? Mamãe morreu.
-TEM CERTEZA?
-Dessa vez, infelizmente, sim. O médico ainda está aqui, fez todos os testes. Uma tristeza.
-Tá bom, daqui a pouco pego o carro e vou.

Meia hora, o telefone toca.

-Egberto? Mamãe está fazendo a janta.
-Você está de brincadeira!
-Não. Acordou, não soube que morreu, viu esse monte de gente mais o doutor, que ela adora, e está fazendo o jantar. 
-Que coisa...


Mais alguns meses...

-Egberto? ACHO que mamãe morreu.
-Já atestaram?
-Já. Dessa vez esperei mais tempo, acho que foi mesmo. 
-Que tristeza. Vou me arrumar devagarinho e vou praí. Qualquer coisa, me avisa. 

Dessa vez faleceu de verdade, mas por via das dúvidas ele viajou sem comer nada. Titia era ótima cozinheira.


*Tocando em Cuiabá, num cine teatro. No meio da plateia surge  Manuel de Barros, o monstruoso poeta. Se encaminha ao palco, de um metro e pouco de altura, e para. Egberto termina a música, se agacha e o poeta pergunta:

-Já acabou?
-Não, Manuel, ainda falta um pouco.
-Mas nosso jantar ainda está de pé?
-Claro!
-Ah, então vou esperar.

E ficou ali parado, de pé ao pé do palco. Egberto tocou mais duas músicas, e avisou ao público:

-Não vai ter bis, tenho que jantar com o Manuel!

E pulou do palco, saindo os dois juntos, sob aplausos frenéticos de todos. 


*Antes da última, deixo o próprio Egberto contar essa:


Praça do Carmo, eu de braço dado com tia Vilma andando em direção ao Dr. Alípio, que foi médico da família e já estava com a idade bem avançada, na sua cadeira de rodas empurrada por uma enfermeira. Eu já era adulto de 40/50 anos.

Paramos diante da cadeira e tia Vilma o cumprimentou: “bom dia, dr. Alípio, espero que o senhor esteja bem, o dia está muito bonito...”

Ele a respondeu com um olhar mais ou menos incerto esboçando um quase sorriso e olhando pra mim perguntou “quem é esse menino?”

“Esse é o Betinho da Ruth e do Camilo, dr. Alípio”

Ele ficou me olhando firme e disse “menino, vai pra casa estudar piano, seu pai me disse que você é muito musical, não perca tempo...”

Esse foi um dos melhores encontros que tive com meu pai desde que ele partiu quando eu tinha 16 anos.


*Fui almoçar com Egberto. Peguei Uber. Quando chegamos, o motorista olha o prédio com atenção e me informa:

-Sabe que aqui mora um dos maiores músicos do Brasil??

Me fiz de desentendido:

-É??
-É. O Hermeto Pascoal!



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