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Debaixo da tamarineira: o pagode carioca, dos anos 80 até hoje

segunda, 25 de março de 2019

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Quem é de acreditar, que acredite. Na quadra do Cacique de Ramos, importante bloco carnavalesco e também berço do pagode carioca, existe uma tamarineira encantada. Quem pisa no terreiro onde ela está plantada e tem talento verdadeiro para o samba, dizem, não escapa do sucesso.

A história começou assim: em fins dos anos 50, três famílias de foliões que moravam à volta do bairro de Ramos, subúrbio carioca, juntaram-se para fundar um bloco de carnaval. Foi aí que dona Carmem – mãe de Bira Presidente, Ubirany e Ubiraci – pediu à sua mãe-de-santo, a famosa Menininha do Gantois, que orientasse espiritualmente os preparativos para a criação do bloco. Mãe Menininha mandou dizer, lá de Salvador, que procurassem um terreno grande, com muitas árvores. Lá deveria ser a sede da agremiação. Assim, em 1961, o Cacique de Ramos foi oficialmente fundado num terreno no bairro vizinho de Olaria, cheio de árvores, entre as quais se destaca ainda hoje uma frondosa tamarineira.

Com as bênçãos do Gantois, o Cacique já nasceu fazendo barulho em meio ao carnaval do Rio de Janeiro. Em 1962, desfilou com o samba “Água na boca”, de Agildo Mendes, que fez sucesso estrondoso e acabou virando o hino do bloco. Outros sambas que hoje são clássicos também se projetaram nos primeiros desfiles de Ramos: “Coisinha do pai”, de Almir Guineto, Luiz Carlos e Jorge Aragão, “Vou festejar”, de Jorge Aragão, Neoci e Dida, e “Chinelo novo”, de João Nogueira e Niltinho Tristeza

Mas foi no início dos anos 70 que a coisa esquentou ainda mais. Dona Conceição, também mãe-de-santo, resolveu recorrer a preceitos do candomblé para consagrar a tal tamarineira da sede do Cacique. Às quartas-feiras, a partir daí, entre as décadas de 70 e 80, passou a acontecer na quadra do bloco o chamado Pagode da Tamarineira, que reunia uma multidão de jovens cantores, compositores e instrumentistas, até então conhecidos apenas num círculo mais restrito do samba. Alguns deles: Almir Guineto, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Jovelina Pérola Negra, Luiz Carlos da Vila, Marquinhos Satã, Sombra, Sombrinha, Pedrinho da Flor, Cláudio Camunguelo. Sem contar com outros frequentadores de primeira hora que já tinham nome mais sedimentado, como Leci Brandão e Mussum.

As quartas-feiras no Cacique tinham sempre casa cheia, gente animada, e muito mais do que isso: a rapaziada do Pagode da Tamarineira trouxe elementos novos para o samba e também reciclou elementos antigos na maneira de se compor, cantar e tocar. Um marco na história do gênero. Foi ali, por exemplo, que o termo “pagode” – já conhecido desde o século XVI na língua portuguesa como sinônimo de “festa ruidosa”, entre outras acepções – ganhou enorme popularidade, dando nome ao novo estilo de samba. Instrumentos como o banjo-cavaquinho (de Almir Guineto e Arlindo Cruz), o repique de mão (de Ubirany), o tantan (de Sereno) e o repique de anel (de Doutor) foram inventados ou adaptados à sombra da tamarineira benzida por dona Conceição.

Naquela quadra surgiu uma nova geração de bambas improvisadores de versos, gente que garantiu novo fôlego para o partido-alto. Criou-se ali o modelo do “pagode de mesa”, reproduzido ainda hoje de norte a sul do Brasil, com os sambistas dispostos em uma mesa comprida, uma espécie de Santa Ceia com amplificação sonora. Lá firmou-se uma batida diferente do samba, mais repicada, sustentada pelo tantan e marcada pelas variações do repique de mão e do banjo. Também debaixo da tamarineira do Cacique surgiu um samba novo, herdeiro direto das velhas guardas das escolas de samba, mas mais aguerrido, cheio de notas longas e agudas, sempre exuberante, com harmonias muitas vezes sinuosas e poesia sempre espontânea, direta, sem elaborações desnecessárias, poesia feita do povo para o povo.

E, claro, ali nasceu o Fundo de Quintal, principal representante deste novo sotaque, grupo que serviu de modelo para muitos sambistas Brasil afora. Na primeira formação, que surgiu em meados dos anos 70, estavam Almir Guineto, Bira Presidente, Jorge Aragão, Neoci, Sereno, Sombrinha e Ubirany. Em 1978, a cantora Beth Carvalho convidou o Fundo de Quintal para participar de seu disco “De pé no chão”. Dois anos depois, o grupo lançou seu primeiro álbum, pela mesma gravadora de Beth, RCA Victor, sob a batuta do mesmo produtor, Rildo Hora. Daí foi um pulo para o sucesso em todo o país.

Ao longo da década de 80, o Fundo de Quintal acabou abrindo caminho para sambistas que também frequentavam a quadra do Cacique de Ramos, a exemplo de Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Marquinhos Satã, Pedrinho da Flor e Luiz Carlos da Vila. Alguns de seus integrantes partiram depois para a carreira solo, como Jorge Aragão, Almir Guineto, Sombrinha e também Arlindo Cruz, de uma formação já posterior à original. O pessoal arrebentou a boca do balão – gíria da época, quem lembra?

E o pagode explodiu de vez no início de 1986, época do Plano Cruzado de José Sarney, quando houve extensivo congelamento de preços de produtos e também do dólar, um misto de pequeno milagre econômico e estelionato eleitoral. No final do ano, logo após as eleições, o plano econômico já tinha naufragado, às custas da escassez de produtos de consumo forjada pela indústria e pelo setor agropecuário, tentando forçar a alta de preços. Durante alguns meses, entretanto, o poder aquisitivo da população, sobretudo a de baixa renda, teve grande oxigenação. Sobrava dinheiro para o lazer. O pagode, que já era sucesso de mercado, se beneficiou particularmente da circunstância: multiplicaram-se as vendas de LPs do estilo, para além da aquisição de toca-discos, rádios e – então uma novidade – reprodutores de CD. No ano de 1986, por exemplo, é lançado o primeiro álbum de Zeca Pagodinho, que inauguraria sua extensa carreira fonográfica.

Nos anos 90, a indústria da música passou a investir num derivado do pagode carioca, com temática romântica e influência das baladas pop. Surgiu, assim, o pagode chamado de romântico, paulista ou universitário, marcado pela presença maciça de formações coletivas, mais do que trabalhos solo. É o caso dos grupos Raça Negra, Soweto, Karametade, Grupo Raça, Só Pra Contrariar, Katinguelê, Art Popular, Pique Novo, Só Preto Sem Preconceito, Swing e Simpatia, Grupo Revelação, entre muitos outros.

Há ainda outro derivado do pagode romântico, que indiretamente não deixa de ser tributário do axé plantado por dona Conceição na tamarineira do Cacique de Ramos: o chamado Pra God, ou pagode evangélico, com a mesma roupagem musical do repertório secular, mas recheado de mensagens religiosas em suas letras, gênero inserido no grande mercado da música gospel brasileira.

Na última década, entretanto, há um movimento de retomada e continuidade do pagode carioca dos anos 80, a partir do próprio Rio de Janeiro. Correndo por fora da grande mídia, afirmam-se cada vez mais jovens intérpretes e compositores como João Martins, Leandro Fregonesi, Marcelle Motta, Pretinho da Serrinha, Nego Álvaro, Inácio Rios, Marina Íris, Renato da Rocinha, Thais Macedo, Roberta Nistra, Leo Russo, Roberta Espinosa, Juninho Thybau, Raul Dicaprio, Pipa Vieira e outros tantos. Olho neles. A tamarineira ainda espalha o seu encanto.


Texto de Luís Filipe de Lima, violonista e produtor musical
Foto: Créditos: divulgação | Participação do Fundo de Quintal no disco "Pé no chão" (1978), da madrinha Beth Carvalho

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