Colunista Convidado

Artes do mago Letieres com seu quinteto, o de Sylvio Fraga e a parceria com Bethânia

terça, 21 de janeiro de 2020

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Dono de um currículo extraordinário, o múltiplo músico baiano Letieres Leite ainda não tem repercussão nacional à altura de seu trabalho. Há três novas chances, recém lançadas em discos e plataformas, para que essa injustiça seja reparada. Letieres assina os meticulosos arranjos e direção musical do novo álbum de sua conterrânea Maria Bethânia, “Mangueira, a menina dos meus olhos” (Quitanda/ Biscoito Fino).


Criador da elogiada Orkestra Rumpilezz, em 2006, ele desvela agora a bordo do Letieres Leite Quinteto seu autoral “O enigma Lexeu”. O lançamento é do mesmo selo Rocinante, do músico, compositor e cantor Sylvio (filho do economista Armínio) Fraga – que, à frente do próprio quinteto, divide com Letieres o seu autoral “Canção da Cabra”. Rocinante, vale lembrar, evoca o cavalo do célebre personagem Don Quixote, do clássico romance do espanhol Miguel de Cervantes, de onde se originou o adjetivo “quixotesco” - para designar façanhas de altruísmo nada pragmático. Algo como fundar um selo dedicado à música de alta densidade estética (como também é o caso do Quitanda, da cantora, associado ao auto explicativo Biscoito Fino), em plena era disruptiva do streaming. 

Mesmo ostentando o porte de diva de longa freqüência em paradas de sucessos e trilhas de novelas, Bethânia mais plasmou que seguiu modas. Daí, este disco alado de apenas nove faixas, em que ela retribuiu a homenagem prestada pela escola de samba Mangueira, que a transformou em enredo campeão do carnaval de 2016. Dissidente nata, ela repesca dois sambas enredo (entre espantosos 37 concorrentes) não eleitos para o desfile daquele ano, ambos intitulados, como óbvio,Maria Bethânia, a menina dos olhos de oyá”. Um deles, viaja na voz arenosa de um dos autores da faixa, Tantinho, e o outro reúne a dupla de pai e filho Caetano e Moreno Veloso – este, da lavra, entre outros, do ilustre Nelson Sargento e do quase xará de Cartola, Agenor de Oliveira. Bethânia fecha o cortejo com uma curta vinheta do samba enredo titular, “Histórias para ninar gente grande”, o do desfile vencedor do ano passado, que tem a rara presença feminina de Manu da Cuíca, no coletivo da autoria. A cantora aciona sua veia dramática. Intercala declamações e canto, na diatribe incisiva da letra: “Desde 1500, tem mais invasão que descobrimento/ tem sangue pisado, retinto/ atrás do herói emoldurado/ mulheres, tamoios, mulatos/ eu quero um país que não está no retrato (...)/ quem foi de aço nos anos de chumbo/ Brasil, chegou a vez/ de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês/ Mangueira, tira a poeira dos porões”.


Berço inicial do samba (a partir da modalidade de roda) exportado para o Rio de Janeiro das Tias da Praça Onze, a Bahia impregna este repertório de exaltações à verde e rosa, através das artes sutis de Letieres. Ele coaduna atabaques, surdos, timbales, caixas de guerra, cuícas e agogôs, das duas sintaxes rítmicas. E cerze a fervura com violões 7 cordas, naipes de sopro e até mesmo eventual quarteto de cordas, temperando de minimalismo e sutileza a emissão majestosa da solista. 

“Queria fazer uma coisa que fosse o samba do Rio, da Mangueira, com sua tradição, estilo, sofisticação, mas que trouxesse toda a memória musical da Santo Amaro infantil, da minha infância. Então convidei Letieres, que é baiano, mas um músico do mundo”, decanta ela.


Bethânia singra pérolas reluzentes de Nelson Cavaquinho (“Luz negra”, “A flor e o espinho”, com Guilherme de Brito, que deságua no texto “Sombras da água”, do escritor moçambicano Mia Couto), Hermínio Bello de Carvalho, com Paulinho da Viola (“Sei lá, Mangueira”, em versão declamada, sem a melodia) e Maurício Tapajós (“A Mangueira é lá no céu”). E ainda, o elo precursor do santamarense (como Bethânia) Assis Valente (“Mangueira”, com Zequinha Reis), um dos principais fornecedores da “baiana lusa”, Carmen Miranda

Iniciado aos 13 anos nas artes plásticas (pintura, gravura), que acumulou com o curso de música da UFBA (Universidade Federal da Bahia), Letieres tocou com músicos locais (Saul Barbosa, Gerônimo, Andréa Daltro). Emigrou e formou bandas no sul (Espírito da Coisa, Abelha Rainha, Banda de Nêutrons) onde atuou também com Renato Borghetti, Nei Lisboa, Antonio Villeroy, Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, antes de partir para Viena, Áustria (Franz Schubert Konservatorium), percorrer festivais europeus e dividir palcos com renomados de lá (Gil Goldstein, Herbie Kopf, Glenn Fischer, Stanley Jordan) e cá, como Hermeto Pascoal, Paulo Moura, Raul de Souza, Marcio Montarroyos, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Lulu Santos, Daniela Mercury e Ivete Sangalo, com quem trabalhou em oito álbuns e três DVDs. Fundado há dez anos, o Letieres Leite Quinteto só agora estreia em “O enigma Lexeu”, editado apenas nos formatos vinil e digital. 

Congrega a matriz percussiva afro baiana com o jazz (há nítidas confluências sonoras com o grupo americano Weather Report, uma de suas inspirações).

“O quinteto nasceu da mesma ideia que me impulsionou a criar a Rumpilezz Orkestra (que tem 25 músicos na formação mais ampla): o universo percussivo baiano, que chamo de UPB, e suas transmissões rítmicas para instrumentos como sax, flauta, baixo e bateria”, define ele, que se encarrega das composições, flautas, saxes, caxixis e agogôs na gravação.

O grupo tem ainda Marcelo Galter (piano, teclados, harmônio), Ldson Galter (baixo), Tito Oliveira (bateria, atabaque, agogô) e Luizinho do Jêje (atabaques, timbau, agogôs e efeitos). Uma presença sempre desconcertante no quinteto é a de Luizinho do Jêje, minha fonte de inspiração, destaca Letieres.

“Quando ele traz suas divisões é um aprendizado pra mim. Não que os outros músicos não me tragam surpresas lindas, como uma célula, um ritmo, ou um título, mas o Luizinho vem com a substância. E faz a aproximação com a matéria prima primordial, para que eu possa criar as composições e os arranjos”, decupa. 

No roteiro do disco do grupo que se apresenta com máscaras coloridas intrigantes, temas incisivos como “Três Yabás”, de escalas velozes e dissonâncias desenfreadas, a cativante “Patinete rami rami” e as solenes afirmações recorrentes de “Honra ao rei”. “Tramandaí” é assaltado por digressões de sax, a ondulante “Catalunya vuelve a casa” desponta em memória ao baterista espanhol Roger Blávia. Por sua vez, “Mestre Moa do Katendê”, foi composta em 2005, para homenagear seu primeiro mestre de música, ainda quando aluno secundarista da etnomusicóloga Emília Biancardi, e hoje ressoa como homenagem ao músico, brutalmente assassinado por um fanático adepto do atual presidente, após uma discussão política. 

Em “Canção da cabra”, terceiro disco do compositor e poeta (também ligado à pintura) Sylvio Fraga com o quinteto que leva seu nome, Letieres entrou como parceiro musical.

“Ele faria alguns arranjos para sopros e cordas, mas a coisa foi se aprofundando e acabou que o disco é dele também”, entrega Sylvio.


“Ele teve total e absoluta liberdade criativa – e isso não é algo que necessariamente se declara, é algo que acontece. Conversamos muito a respeito das músicas, mapeamos tudo, ele foi a muitos ensaios. Houve uma imersão”, contabiliza.

“A maneira dele pensar os arranjos a partir das claves, da percussão, é de um frescor extraordinário. Sem falar na inspiração melódica e harmônica dele. Acabou sendo um casamento muito feliz, por uma afinidade de busca, sobretudo rítmica nos nossos trabalhos, e uma afinidade pessoal mesmo, de viver a arte”, elogia.

Letieres devolve: “O trabalho de Sylvio é um dos que mais me encantam hoje no Brasil. Esse disco traz uma contribuição importante no avanço e nas possibilidades da canção”. 

Dono de uma caligrafia intensa e fragmentada pouco afeita à linearidade, Fraga tem entre seus parceiros no disco o pilar da vanguarda musical carioca, Thiago Amud. A dupla assina faixas como a etérea “Fata Morgana” (“miração em desvario/ mãe do mar metáfora”), a ritualística “Euá” (“lá na beira do rio/ evém Ifá/ quase a morte a lhe alcançar/ mas já lhe acolhe euá”) e a vertiginosa “Da vida”, crivada de aliterações (“devo dividir/ dúvidas indivisíveis/ e deve ainda vir/ dádivas desavisadas”). José Arimatéa (flugelhorn e trumpete) e Bruno Aguiar (baixo), integrantes do Sylvio Fraga Quinteto são parceiros do líder na untuosa “O lagarto e o gato largado”. Na crestada “Romaria de jagunço”, aberta por uma fala do ensaísta Antonio Cândido referente ao ciclo literário nordestino, evocando o livro “Angústia”, de Graciliano Ramos, os co-autores são os outros integrantes do grupo, Lucas Cypriano (Rhodes e piano) e Mac William Caetano (bateria). Também comparsa de Sylvio é o seu amigo pessoal Pedro Carneiro, que atende pela saborosa alcunha de Vovô Bebê. Divide com ele a arqueológica “A flauta” (“Na caverna andaluz/ quarenta mil anos atrás/ ficavam por um tempo e seguiam/ para terras desconhecidas”) e a sombria “Sei da cor da noite”: “além da dor da morte/ eu sei da morte/ aquela paz”. Graciliano Ramos ressurge na citação de outra de suas obras primas, em “São Bernardo”, aberta pela leitura de um trecho na voz encantatória do ator Othon Bastos: “Antes de iniciar este livro, imaginei constituí-lo pela divisão do trabalho”. Não por acaso, a música da faixa é criação coletiva de todo o grupo.


Texto por: Tárik de Souza

Fonte das imagens:
Letieres Leite | foto de Wilton Junior
Maria Bethânia | fotos de Jorge Bispo 
Sylvio Fraga | foto de João Atala



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