Um papo com o Cazes

Tocar junto e tocar ao mesmo tempo

domingo, 20 de setembro de 2020

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Em minhas mais remotas recordações musicais da infância, já aparece o interesse por um certo “feitiço do tempo”: instrumentistas e cantores que brincavam com divisão das frases da melodia: Luís Barbosa, Carmen Miranda, Ciro Monteiro, Pixinguinha, Jackson do Pandeiro, Garoto, João Gilberto. Mais tarde, já adulto e tendo estudado ritmo e som, passei a entender e valorizar ainda mais o que esses artistas faziam nos “desvãos do tempo”, para usar uma expressão que li há dias num texto do Mia Couto. Ao longo de décadas com o cavaquinho nas mãos, tentei dominar a magia destes feiticeiros, e sigo explorando essa riqueza. 

O choro, desde seus primórdios, teve nesse aspecto um de seus atrativos. Mariza Lira, em artigo sobre Joaquim Callado publicado na Revista Brasileira de Música em 1940, escreveu sobre o Pai do Choro: “o que diferençava a interpretação desse artista, tornando-a característica, não eram os desenhos que traçava com a melodia, nem o ritmo, nem tampouco as variações de contracanto; era tudo isso repousando numa preguiça, indecisão propositada, espécie de ganha-tempo”. Até hoje, no choro e na roda de choro, essa negociação acontece a todo momento, num jogo divertido e criativo. 

Ao ouvir com muita atenção dezenas de gravações de samba das décadas de 1970/80, registradas em sistema analógico e com 8 ou mais músicos tocando juntos no estúdio, é possível flagrar momentos preciosos em que os compassos parecem ser elásticos, flexíveis. Tudo que se refere ao tempo vai sendo negociado passo a passo e o resultado é uma organicidade que potencializa a vibração do samba. Na música cubana, no merengue de Caracas, no tango argentino ou no ternário cheio de balanço da mazurca da Martinica, muitos e muitos especialistas dedicaram e dedicam suas musicalidades a essa prospecção dos ínfimos espaços de tempo. E disso resulta o sotaque musical de cada lugar, o conjunto de propositadas imprecisões, que ganham a dimensão de dialeto.

Pois bem, nos últimos seis meses, o distanciamento social nos levou a outra situação. A latência ou delay da internet nos impede de tocar junto com outros músicos e com isso, toda live fica meio dead. O máximo que podemos realizar em termos de música de conjunto é construir uma intepretação coletiva sob a tirania desagradável do metrônomo. E aqui cabe uma olhada no retrovisor.

Convivi com músicos de grande experiência de estúdio como Chiquinho do Acordeom e, embora tivesse um condicionamento tal que ao ouvir a palavra “gravando”, saía acertando tudo, detestava tocar com metrônomo. Há décadas, outro expert da gravação, o produtor e instrumentista Rildo Hora, cunhou a frase: samba que não corre não vende disco, para naturalizar a acelerada que resulta de um samba animado. Rafael Rabello, com todo domínio do violão, pedia “pelo amor de Deus” para não usar o metrônomo no estúdio. Nas últimas duas décadas, com a gravação digital, o metrônomo foi incorporado, ninguém reclama mais. E os técnicos de gravação se sentem mais seguros assim pois, como eles falam: está tudo no grid. Às vezes gravamos algo com um tempo sutilmente alterado e quando vamos ouvir, o técnico nos olha num misto de orgulho e arrogância: já ajeitei. E lá se foi mais um desvão do tempo.

Criado em dezembro de 2016, o coletivo “Choro na Rua”, liderado pelo trompetista Silvério Pontes e do qual faço parte desde o primeiro momento, tem realizado encontros inesquecíveis em que o “tocar junto”, ou como diz nosso decano Zé da Velha: “tocar que nem garçom, servindo o outro”, atinge apoteoses de energia e alegria, capazes de contagiar o público. Nosso desafio ao realizar a série de vídeos “Choro na Rua em Casa”, com o apoio da Secretaria de Cultura de Niterói, tem sido manter essa alegria com o fone de ouvido batendo o toc-toc do metrônomo. Temos feito esforço para continuarmos tocando juntos e não apenas ao mesmo tempo. É duro, é utópico, mas nos ensina a caminhar. 

Henrique Cazes

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