A Palo Seco

Dominguinhos: um elogio à simplicidade

domingo, 07 de março de 2021

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Dominguinhos sempre foi um homem quieto, meio encabulado. Uma personalidade especialmente interessante quando se trata de um grande artista: só fazia aumentar a surpresa de vê-lo soltar a sua voz, completamente à vontade no palco, empunhando a sua sanfona.

Como todo artista realmente importante, também, Dominguinhos tinha uma postura completamente intrigante. Vejam bem, não é que ele fosse afeito a extravagâncias como ouvimos falar por aí de grandes nomes da música popular. Ao contrário, o que assusta, no sanfoneiro, é justamente a sua capacidade de ter mantido a sua postura intacta ao longo dos anos de sucesso.

Passei a prestar mais atenção nesse comportamento depois de ter visto a participação de luxo de Dominguinhos durante a gravação ao vivo do DVD “Fé na Festa”, de Gilberto Gil. Como de praxe, antes de entrar em cena, Dominguinhos foi anunciado, tocou algumas músicas em pé, em destaque, e o show continuou transcorrendo, com o palco recheado de grandes instrumentistas liderados pelo músico baiano. Depois de tocar e cantar, Dominguinhos, discreto, sentou-se no canto do pequeno palco que servia de suporte à bateria no fundo do palco e, lá de trás, continuou, delicado, acompanhando com sua sanfona a apresentação durante quase dez músicas.

Quando tomamos Dominguinhos como maior referência de sua geração em seu instrumento e seu gênero musical, o ato sutil passa a denunciar uma simplicidade incomum, um sentimento mesmo de dedicação à música para além das luzes do palco, que não pode deixar de nos fazer pensar.

Dominguinhos no palco com sua sanfona (Foto: Divulgação/Rolling Stone) 

Existem dois caminhos possíveis para se explicar esse comportamento. O mais fraco romantiza uma origem social perdida: é o jeito matuto, humilde da infância de Dominguinhos que não se perdeu e se manteve intacto — explicação sedutora, mas que não dá conta de casos análogos que trilharam exatamente o caminho oposto. A outra possibilidade, mais forte, destaca o que se construiu durante o desenvolvimento do forró por Luiz Gonzaga: que Dominguinhos foi o mais fiel seguidor de uma certa ética de sanfoneiro proposta pelo seu mestre.

Mais precisamente, que as muitas canções que Luiz Gonzaga compôs ao lado de letristas diversos estão recheadas de casos anedóticos, dicas e críticas que versam sobre o ofício do sanfoneiro e consolidam um certo tipo de conduta para os músicos (ver, por exemplo, “O Tocador quer beber”, “Sanfoneiro Macho” e “Dançador ruim”, para citar três exemplos).

Há uma infinidade de trechos que surgem nesse repertório que fundam uma conduta correta para o sanfoneiro, muito ligada às posturas que o próprio Gonzaga admirava em seus pares e situações que marcaram a sua trajetória pessoal. A imagem  criada é, assim, de alguém que não pode se derramar no álcool excessivamente, capaz de tocar por horas, em qualquer sanfona, por mais velha ou maltratada que esteja, uma imagem do músico popular capaz de tocar em qualquer circunstância ou tom: um sujeito em quem a sanfona de confunde com a própria pessoa.

O que Dominguinhos fez, mais do qualquer um, foi levar às últimas consequências essa postura. Em parte, porque acompanhou seu mestre Luiz Gonzaga aonde quer que fosse desde os primeiros anos da adolescência. Assim, se Gonzagão foi quem fundou um manual de conduta para os sanfoneiros, Dominguinhos foi aquele que o levou às últimas consequências, colocando-o em prática e mostrando o caminho para todos os outros discípulos do velho Gonzaga.

Que Dominguinhos, que faria 80 anos no último mês, nunca deixe de ser a nossa mais sincera referência em postura, seja no palco ou fora dele.


A discrição de Dominguinhos durante o show “Fé na Festa”. 


Heitor Zaghetto 


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