A música de

Anotações sobre um disco estrelar

por Nashla Dahás

sábado, 24 de julho de 2021

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Lançado originalmente no segundo semestre de 1985 pelo selo Pointer, "Saudade do futuro" parece uma declaração de amor ao tempo. Joyce tinha 37 anos, exatamente a idade que eu tenho hoje, e já era cantora e compositora reconhecida no Brasil e no exterior. Não o exterior norte-americano, diga-se de passagem, Joyce esteve em Moscou e em Cuba em plena Guerra Fria. O passado recente que ela canta também é o mesmo que eu pesquiso como se tivesse vivido: “essa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”, como elaborou Renato Russo alguns anos antes dela, em 1981. São os anos de 1960 e 70 que aparecem nas belas letras de "Velhos no ano 2000" – versão de Joyce para "When i’m sixty-four" de John Lennon e Paul McCartney - e "Stone Washed", composição de Joyce em parceria com Monique Hecker. Ousado e pensado em cada detalhe, o LP brinca com a memória e ironiza as grandes expectativas que nutrimos em cada tempo a respeito do que virá e de quem seremos. Me pergunto onde estará o passado de Joyce agora que seu futuro descolado se tornou o meu difícil presente, este mesmo, que me rouba o amanhã todos os dias. “Que tudo é um\ Tudo é exato\ Tudo é infinitamente quatro” ("Quadrantes"), imagino que ela me diga, enigmaticamente romântica.

O CD que tenho em mãos integra a caixa lançada em 2016 pelo selo Discobertas intitulada "Joyce. Anos 80" e reúne quatro álbuns: "Feminina" (1980), "Água e luz" (1981), "Tardes cariocas" (1983) e o meu preferido "Saudade do futuro" (1985), todos remasterizados. O lançamento aconteceu pelas mãos do produtor e idealizador do selo, Marcelo Fróes. No encarte do disco há um texto de apresentação assinado pelo pesquisador Mauricio Gouvêa, que destaca o tom fornecido pelos arranjos de Gilson Peranzzetta às canções, assim como a presença dos baixistas Arthur Maia e Fernando Leporace. Seguem-se as letras das músicas, um privilégio para quem cultiva o hábito de procurar sentidos nas artes. Além disso, a fotografia com Milton Nascimento que compõe a contracapa é o registro comovente de um instante perfeito. Nos olhares de ambos, Joyce e Milton, nas roupas que usam e no movimento dos corpos, há um tanto do tempo em que estão e da música que compartilham: "Tema para Jobim", gravada pela dupla naquele mesmo ano de 1985; composição de Joyce com Gerry Mulligan, saxofonista de jazz norte-americano e referência mundial no sax barítono.

São ao todo 11 músicas, no geral, entre dois e quatro minutos cada uma. Um CD para ser ouvido repetidas vezes. Para um afago na saudade dos discos vale contar como estavam dispostas as canções antes da era digital: o lado A trazia: 1. "Velhos no ano 2000" (Lennon e McCartney – versão Joyce), 2. "Cortina de Bambu" (Joyce), 3. "Sonora garôa\ Três apitos" (Joyce e Noel Rosa), 4. "Tema para Jobim" (Gerry Mulligan e Joyce. Participação especial de Milton Nascimento) e 5. "Stone Washed" (Joyce e Monique Hecker). No lado B: 1. "Povo das estrelas" (Joyce), 2. "Peixe estrela" (Joyce), 3. "Fã da Bahia" (Joyce), 4. "Minha gata Rita Lee" (Joyce) 5. "Quadrantes" (Joyce) e 6. "Ziriguidum" (Tiãozinho da Mocidade, Gibi e Arsênio). Como se vê, um disco autoral lançado na contramão dos sonhos que o ressurgimento da democracia após duas décadas de ditadura militar poderiam alimentar: “Pois é, tudo calmo no país\ Eu queria ser feliz\ Mas não é feliz o sonhador\ Só sei que um belo dia isso mudou\ Vai ver que mudei eu, ou o tempo virou” ("Tema para Jobim").


Ser política
No livro publicado em 2020, "Aquelas coisas todas: músicas encontros ideias", Joyce Moreno recupera textos escritos para "Fotografei Você na Minha Roleiflex", lançado em 1997. Não li a primeira versão, mas garanto que nesta segunda sobressai a consciência feminista da artista. Em passagens diversas, dá gosto de ler uma espécie de passado comum às meninas mulheres brasileiras de maneira tão crua, “simples e bonita” como descreveu Vinicius de Moraes em depoimento de 1968: “É dessa Joyce que eu gosto de falar, pois essa é a Joyce que vai dar o que falar: a Joyce que é toda musicalidade, que tem em alto grau o sentido das palavras...”. Pois é com tal exatidão e graça que Joyce narra, por exemplo, a decepção de não se descobrir tão bonita quanto sua mãe e familiares próximos faziam parecer; ao que acrescenta diante da maturidade retrospectiva: “Saí dali com a certeza de que a beleza, como a imaginamos, absoluta, não existe; existe uma impressão de beleza. Mas ao nascer nesse mundo como mulheres já estamos condenadas a perseguir essa improvável impressão até o fim de nossos dias, e a sofrer e a gozar por causa disso” (P. 39). Em depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som, em 2018, Joyce associou esse particular ao início da carreira: “Foi o Vinicius de Moraes que me chamou de feminista pela primeira vez. Meu disco de estreia, em 1968, já era autoral. Tinha 19 anos, não queria me casar. Sempre fui meio ‘Tomboy’”. (O Globo, 31\03\2018).

Na reportagem publicada pelo El Pais (13.12.2020) sobre o lançamento do livro, novamente a política se destaca em tons inconfundíveis:

“A musicalidade do texto de Joyce não a faz ignorar os aspectos menos oníricos da realidade brasileira que testemunhou e testemunha. Há no livro a brutalidade sanguinária das ditaduras (entre os personagens, estão Stuart Angel e Tenório Jr., assassinados pela repressão brasileira e argentina, respectivamente), assédio sexual (por parte de jornalistas, contratantes, colegas), outras formas de machismo (o crítico que achou que sua música era boa demais pra ser de uma mulher) e covardias da indústria fonográfica (em retaliação a um processo seu contra a EMI, as grandes gravadoras se uniram para mantê-la fora do mercado). Mas em seus parágrafos Joyce atravessa tudo com a graça possível”.

É verdade, eu diria. Tudo isso está lá, na Joyce Moreno que pode ser lida através de sua versão cronista de si mesma em 2020. Mas discordo de que seja mera “graça possível” aquilo que torna a leitura tão atraente. Desconfio de que seja algo que faz parte de Joyce desde antes, difícil dizer, de qualquer modo, estava lá em 1985, quando ela já antevia certa "Saudade do futuro", antes que ele houvesse chegado. Arrisco: é uma formação política, mental, emocional e moral, um espírito político ligado ao grupo, a comunidade, mesmo que seja uma bolha, expresso em poesia e canção rigorosas, leituras de mundo pouco confortáveis no interior de um script identitário, embora isso também seja muito importante. Nesse ponto, embora Joyce cite sempre a sua turma do 68 brasileiro, com destaque para os amigos e amigas que se tornaram célebres ícones da MPB, quando ouvi "Stone Washed" pela primeira vez, foi para "Like a Rolling Stone" que me transportei. De fato, não consigo deixar de ver um pouco do grande ídolo e gênio dos anos 70 em Joyce. Símbolo geracional de certo desprezo pelo rótulo “música engajada” e compositor de vários dos hinos evidentemente políticos de algumas bandeiras tão comuns em 1968 quanto hoje, imagino que Dylan tenha sido referência inescapável para versos como “E essas pedras\ Que rolaram no nosso caminho\ É que desbotaram a nossa emoção\ E agora ficou difícil\ Fazer com que a pedra lave\ Todo o blue jeans da minha geração”.


“Tudo é uma canção”
Nascida em 1948, crescida na zona Sul das praias cariocas, Joyce parece encarnar a “garota precoce” mesmo para os padrões da época, em que as moças casavam perto dos 17 ou 19 anos. Mostrou-se desde sempre um talento musical: cantora, compositora, arranjadora e instrumentista, embora também tenha outros privilégios intelectuais como o de se virar em cinco idiomas e escrever muito bem, como ela mesma conta. Tornou-se parte de um seleto grupo de compositoras em uma época em que isso não era nada comum e soube administrar sua conquista em diversos momentos; destaco ao menos dois, quando a indústria fonográfica se impunha às vontades e talentos individuais das cantoras, e quando a comunicação migrou para o modo redes - vale conferir o portal biográfico da compositora e, claro, sua ampla discografia, que se vale de nada menos do que 400 gravações de músicas suas por celebridades de ontem e de hoje como Elis Regina, Maria Bethânia, Nana Caymmi e Zizi Possi, para não falar dos homens ou da área internacional. Ela é um escândalo incontestável, totalmente ciente de sua própria força criativa.

"Saudade do futuro" tem samba, jazz, bossa nova, Tropicália e Clube da esquina, tem amor à Bahia, Beatles e mais. Tem poesia e tem dor, canções de amor, tem encanto e doçura quase infantil, tem passado, memória, arte e política, tem de tudo isso um pouco, desde que Tudo seja uma canção. Em cada uma delas, pequena história em letra e melodia, com começo, meio e reinicio, raramente um fim. Alguma brincadeira também se faz presente, em versos que cantam o futuro visto dos anos 80 com carros-nave que trafegam pelo espaço no distante século XXI. Na capa do CD lançado em 2016, apenas o céu estrelado, como algo que se almejava conquistar. Entre erros e acertos de projeção, acredito que o álbum interessa e encanta tanto àqueles\as que compartilharam o passado vivido, narrado e cantado por Joyce, quanto aquelas como eu; quis o destino que viéssemos depois, não importa, Tudo é também história.



Nashla Dahás é historiadora, doutora pela UFRJ com pós-doutorado em História do tempo presente pela UDESC. É coeditora do site de divulgação História da Ditadura Novas Perspectivas, colaboradora do portal A Música de História Pública da Música no Brasil e revisora da Editora Raiz Educação-RJ.


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