Não temos mais o tempo que passou? 25 anos de memórias sobre Renato Russo
por Carlos Eduardo Pereira de Oliveira
Este mês de outubro marca 25 anos desde que o Brasil perdeu Renato Russo, um dos maiores intérpretes dos anseios juvenis urbanos da década de 1980, e um dos grandes nomes da música nacional. Como vocalista da banda Legião Urbana, foi responsável direto, assim como Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, por músicas que afetaram o imaginário social e flertaram com temáticas caras ao momento histórico que se atravessava. A redemocratização dava os últimos passos e seus ritos finais tiveram como trilha sonora uma geração de bandas de rock que lhe davam ritmo, na qual a Legião e Renato foram alguns de seus expoentes. O álbum Legião Urbana (1985), que angariou mais de 500 mil cópias vendidas, abriu as portas do país para a sensibilidade e raiva do artista brasiliense.
Como uma das caras do BRock (DAPIEVE, 1995), Renato Russo se consolidou como representante de uma juventude que encarava a desesperança no futuro e que buscava respostas para suas agruras. Não sem razão, a revista Veja, na semana de sua morte, publicou: “O rock brasileiro perde um ídolo muito talentoso e sofrido” (NASSER e SOUZA, 1996, p.115). O sofrimento do músico dialogava com aquilo que a juventude urbana brasileira experimentava nos anos de 1980: altos índices de desemprego, crises econômicas sequenciais e violência urbana. As canções de Renato Russo oferecem diferentes janelas interpretativas para o passado recente brasileiro, incluindo a relação da música com a sociedade no período, sua interpretação sobre o tempo histórico e os vetores de memória abarcados após o precoce falecimento do cantor e compositor. Gostaria de apresentar elementos que situam a figura de Renato Russo em um tempo histórico alargado, no qual a memória se apresenta como um de seus elementos fundantes.
Importante destacar a trajetória de Renato Russo e Legião Urbana como signo da cultura contemporânea brasileira. Esta dialoga com a consolidação da indústria e do mercado de bens culturais no Brasil, aliada ao boom de novas bandas que ganhavam espaço nos meios de comunicação, além de amplitude nacional com suas canções. O jornalista Arthur Dapieve (1995) nomeou essa proliferação de bandas de rock em território nacional como BRock. Dapieve destaca as principais bandas nesse período, além de elaborar um mapa cronológico do rock brasileiro nos anos 1980 que daria conta da origem desse movimento. Entre as bandas e artistas apontados por Dapieve, a Legião Urbana se apresenta como um de seus principais nomes. O trabalho do autor é importante por dar os primeiros elementos de análise sobre um importante momento da música brasileira, além de evidenciar sua relevância frente às juventudes brasileiras, como catalisador de identidades fundadas na relação com as canções.
Destaco a importância da formação e consolidação de identidades juvenis por meio da música, movimento no interior do qual a Legião Urbana se estabelece como voz privilegiada e catalizadora de anseios juvenis nos anos 1980. Paula Guerra coloca o “desenvolvimento de novas funções musicais” (GUERRA, 2010, p.89) como fator relevante do papel da música na formação de identidades jovens. Para a autora, “a música é um campo de conhecimento para os jovens expressarem e também construírem suas subjetividades individuais e identidades coletivas” (GUERRA et all., 2019, p.7). A importância da música para a formação de identidades juvenis estava presente no discurso de Renato Russo. Em entrevista para a MTV, em 1994, o artista destacou que a Legião Urbana era uma banda que cantava, em português, canções de rock, “a partir de uma experiência urbana do que é ser um jovem brasileiro vivendo a partir dos anos 70, tendo uma experiência urbana na cidade” (RUSSO, 1994).
Portanto, a experiência musical da banda transcorre pela própria experiência de seus criadores, numa amálgama entre criação artística e realidade social. Olhar para a trajetória da Legião Urbana e de Renato Russo, por meio de suas canções, nos ajuda a compreender e analisar o Brasil da década de 1980, além de destacar a construção de culturas juvenis fundamentadas na relação com as mídias, e nesse caso, com o rock. Deve-se considerar a obra em questão como criadora de realidade e efeitos naqueles que a consomem. Guerra (2017) aponta a necessidade em encararmos a obra artística como conhecimento, representação, interpretação, valorização e imaginação do social. Dessa forma, a obra se inscreve na realidade social e histórica, ao mesmo tempo em que a influencia, através de suas interpretações geradas sobre ela.
Assim, a centralidade da produção e do consumo cultural no imaginário juvenil é transpassada pela experiência da Legião Urbana e de Renato Russo. Essa ligação, para Guerra, se inscreve em um contexto de ação e universo simbólico, que reúne um conjunto elevado de “expressões, processos, acções [e] objetos” (GUERRA, 2010, p.433). Nesse sentido, Simon Frith (1996) coloca que a música produz e cria identidades, mais do que apenas as reflete. Portanto, não seria incoerente apontar o artista e sua obra como partícipes das mudanças intensas atravessadas pelo Brasil dos anos 1980, e um dos principais vértices de discurso da juventude no período. Esse sentimento foi pontuado por Renato, na mesma entrevista cedida à MTV: “As letras e até a própria atitude da gente, fala da gente. Então, de repente, a pessoa que ouve uma canção da Legião Urbana, (...) ela vai sentir que aquilo é uma coisa que tá sendo dita pra ela mesma”.
Renato Russo cantava sobre ele próprio, suas dores e percepções de mundo, e encontrava eco em outras pessoas que compartilhavam valores e noções próximas a ele, principalmente nos “filhos da revolução” que, nos anos 1980, experimentaram a redemocratização brasileira, aliada às contradições sociais alargadas nesse período. A sociedade brasileira experimentou intensas mudanças em seus panoramas sociais, políticos, culturais e econômicos, desde fins dos anos 1970, que impactaram a camada jovem do país. Marcos Napolitano (2017, p.316) destaca a emergência de um novo tipo de subjetividade juvenil, “formada na época da ‘abertura’ (...) herdeira das matrizes culturais de esquerda, mas também formada a partir da experiência da indústria cultural, sobretudo fonográfica e audiovisual”. É essa juventude na qual Renato Russo se encontra, e com quem dialogou durante mais de 20 anos de atuação com a Legião Urbana.
Marcelo Rubens Paiva (1996) demonstrou essa faceta de Renato, quando da sua morte em 12 de outubro de 1996. Escreveu que “Renato se sentia um messiânico, um catequizador. Primeiro, a palavra. Não usava máscara, figurino. Renato era Renato, dentro e fora do palco”. Thales de Menezes (1996) foi categórico ao afirmar que “a empatia de Renato Russo com os jovens não pode ser mais natural. A poesia de suas canções era alicerçada na inquietude do adolescente, essa eterna sensação de que no mundo não existe lugar para ele”. A Folha de São Paulo dedicou sua edição daquele dia ao artista, com diversas matérias sobre seu impacto na música brasileira e na vida dos jovens. Grandes veículos de mídia do país dedicaram extensa programação à obra de Renato e seu legado. Na MTV, por exemplo, a programação do dia 11 de outubro foi alterada para a exibição de clipes e programas com o cantor.
O impacto da morte de Renato Russo, refletido pelos veículos de mídia destacados, reafirma o fato de que sua imagem se fixou enquanto cânone, como ideal da geração de jovens da década de 1980, e cristalizou-se no imaginário juvenil como expressão de suas angústias, e portador da imagem contestatória (e contraditória) de uma subjetividade juvenil. Entretanto, sua imagem não ficou estanque ao seu tempo de produção. São inúmeros os produtos culturais que versam sobre sua vida e obra, entre shows, álbuns, exposições, documentários, filmes ficcionais. Se, em vida, Renato Russo dialogava com sua geração, após sua morte experimentou-se uma intensa rememoração de sua trajetória e uma renovação de público que, até hoje, consome e reinterpreta suas canções.
O diálogo com novas gerações se estabelece através de um elaborado trabalho sobre a memória do cantor, realizado por diferentes vertentes sociais, e apoiado em um ideal de juventude que se estabeleceu fortemente a partir da década de 1990. Nesse, privilegiou-se o aspecto contestatório e combativo presente em suas canções. Além disso, muitas das letras de Renato encontram coro em diferentes momentos da história do país. Nesse ponto, recorro a Bruno Groppo e sua análise acerca da relação entre identidade e memória, ao destacar que “a identidade não é uma essência imutável (...), mas uma construção social e cultural. Dito de outra forma, é produto de um processo histórico que se apoia sobre a memória” (GROPPO, 2002, p.191).
Podemos afirmar que a memória de Renato Russo foi construída durante mais de duas décadas por meio dos produtos culturais. Na ficção, filmes como Eduardo e Mônica (2020) e Faroeste Caboclo (2013) trouxeram canções ímpares da produção de Renato para outro formato, atualizado para o consumo de novas gerações, sem perder de vista a nostalgia daqueles que dividiram o mesmo tempo histórico que o cantor. A cinebiografia Somos Tão Jovens (2013), que remonta sua trajetória, atua no mesmo espectro. Rock Brasília – Era de Ouro (2011) toca na experiência da Legião Urbana em contato com outras bandas da capital, e traz Renato como uma das principais figuras desse movimento. A exposição Renato Russo, concebida pelo Museu de Imagem e Som de São Paulo e inaugurada em 2017, apresentou uma memorabilia do artista, exposta para outras gerações de público, que lotou os corredores do MIS.
Em 2012 a banda voltou a se reunir para um show especial, por iniciativa da MTV, em comemoração aos 30 anos da Legião Urbana. Desde a morte de Renato Russo até esse show no Espaço das Américas, em São Paulo, foram apenas três apresentações de Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos entoando os grandes clássicos da banda. Intitulada MTV ao Vivo: tributo à Legião Urbana, que teve Wagner Moura nos vocais (além de outros convidados), a homenagem esteve próxima a um desacordo a respeito do uso do nome. A MTV, produtora do show, ficou impedida de utilizar o nome durante semanas, por conta de imbróglio judicial envolvendo os remanescentes da Legião Urbana e a família de Renato Russo, detentora dos direitos do músico (CORREIO BRAZILIENSE, 2012). Naquele momento, o trâmite foi resolvido e mais de 8 mil pessoas puderam acompanhar a apresentação e gravação do DVD especial.
Entretanto, desde 2020, o conflito se adensou. Em dezembro daquele ano, a operação “Tempo Perdido” da Polícia Federal apreendeu diversos itens relacionados à banda, a partir de uma notícia-crime do responsável pelo espólio do artista, que pediu investigações sobre supostas músicas inéditas comercializadas na internet. Essas fitas, apreendidas no depósito da gravadora Universal, ficaram em posse do herdeiro (BREDA, 2020), e expuseram uma fratura nessa relação, que culminou na ida à justiça federal pelo uso da marca “Legião Urbana”. Em junho desse ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão que permitia a Dado e Bonfá o uso do nome, em decisão apertada. De acordo com o ministro Marco Aurélio Buzzi, “a marca está enraizada na vida pessoal e profissional dos recorridos que não podem ser tolhidos do direito de identificação com o nome” (FALCÃO, 2021).
Durante esse período, a memória de Renato Russo foi colocada à baila de diferentes maneiras. De um lado, como dono da marca “Legião Urbana”, principal compositor e responsável único pelo sucesso da banda; do outro, como esse processo seria um ultraje à imagem do músico. Em ambos os casos, a imagem do músico é evidenciada por diferentes recortes e intenções. Esse olhar sobre a memória é próprio de sua constituição, como processo de reconstrução do passado, a partir da ótica do presente. O que deixa evidente as tensões em torno de uma memória que solidificou o passado em prol de uma visão homogênea e pacífica.
A memória de Renato Russo encontrou fissuras a partir do embate pelo uso do nome “Legião Urbana”, mas não apagou a importância do artista no imaginário brasileiro. Importa destacar que, mesmo após 25 anos de sua morte, suas canções encontram coro em outras gerações, que não aquela para qual cantava a plenos pulmões. Renato Russo é um dos porta-vozes de um momento da história brasileira; um vértice para se analisar nosso passado recente, cravejado de incongruências e contestações. A memória desse artista permanece viva, ressignificada pelo transcorrer do presente que tanto o motivava.
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