Entrevista

Entrevista Exclusiva: Joyce Moreno, 75 anos

por Caio Andrade e Mila Ramos

sábado, 28 de janeiro de 2023

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"Não considero nenhum trabalho meu o melhor.
Acho que o melhor será sempre o próximo."

Prestes a completar 75 anos no último dia deste mês de janeiro, a cantora e compositora Joyce Moreno conversou com a equipe do IMMuB a respeito do passado, presente e até futuro de sua trajetória musical, nos contando um pouco sobre sua carreira, suas influências, reconhecimento no Brasil e no exterior, realizações e o espaço que veio conquistando desde o fim dos anos 1960. Acompanhe a seguir:


Caio Andrade: O primeiro registro de Joyce em um álbum foi no disco “Sambacana”, de Pacífico Mascarenhas. Você se imaginava poucos anos depois em um estúdio gravando seu próprio álbum? Como foi esse processo de “se tornar” artista?
Joyce Moreno: Quando eu gravei esse disco foi uma surpresa pra mim, porque eu não imaginava que o Roberto Menescal fosse me convidar pra fazer essa participação. Eu tinha 15 anos, ele tinha ouvido uma gravação caseira que eu tinha feito, ele era muito amigo do meu irmão mais velho, e pra mim foi uma grande novidade tudo. Eu gostei de ter participado, tinha meus sonhos assim com a música, mas não imaginava ainda, tanto que eu fui fazer faculdade de jornalismo, me formei, e aí eu já estava envolvida. Mas aos 15 anos, eu realmente não fazia ideia, era apenas um sonho.

Fotos de Myriam Villas Boas / Acervo pessoal da artista


CA: Por falar no primeiro álbum, na capa de “Joyce” (1968) você aparece olhando para o infinito, quase que deitada, como uma jovem sonhadora. É um modo correto de ler esta capa? 
JM: Não sei, nunca pensei dessa forma. É uma leitura de quem vê.

CA: Você possui uma vida bastante musical desde cedo, chegando a dar aulas de violão. Você também toca outros instrumentos?
JM: Não toco, violão é meu único, eu sempre me voltei especificamente pra ele. Nunca me interessei muito em outros instrumentos. Já brinquei com outras coisas, na época que trabalhei com Egberto Gismonti nos anos 1970 eu tocava percussão, vazia vocais, tocava viola de 10 cordas no show com ele, mas foi uma coisa muito episódica, nunca fui muito envolvida com isso. Tive vontade de tocar flauta uma época, mas não levei adiante. Fiquei mesmo envolvida, mergulhada no violão. Sempre foi o meu instrumento primordial.

CA: Muitos consideram você uma referência para uma geração de mulheres compositoras que se destacaram a partir dos anos 1960. Como você lida com isso?
JM: Eu diria que eu sou mais referência agora, né. Hoje, já com o tempo passado, elas me procuram muito, conversam muito comigo, não só as compositoras, mas as instrumentistas também, porque, chegando numa pergunta que tá lá na frente, sobre a questão do machismo musical, ser instrumentista foi uma outra vitória, uma outra batalha que eu tive, uma outra barreira que precisei quebrar: a questão de fazer meus próprios arranjos, ser bandleader, porque o mundo do músico, no Brasil, é um ambiente musical extremamente fechado pras mulheres. O da composição também, mas esse foi se abrindo mais a partir do final dos anos 1970, apareceram muitas mulheres compositoras. Nessa época, um pouco antes até, liderar uma banda era uma questão muito delicada, não era qualquer músico que topava ser liderado na banda por uma mulher, então a gente sempre era olhada de uma maneira meio “condescendente”. Isso foi mudando, eu vejo que hoje as compositoras e instrumentistas existem em grande número. Isso é uma alegria pra mim muito grande.

A Tribo, 1970 / Divulgação: Acervo pessoal da artista

CA: Você considera sua participação no grupo "A Tribo" e o álbum com Nelson Angelo uma fase mais "experimental" da sua carreira?
JM: Eu vou dizer assim, com toda minha franqueza, que foi a fase mais apagada da minha carreira. Eu fiquei durante alguns anos, quase cinco, na época em que fui casada com o Nelson Angelo, tive minhas duas filhas mais velhas, depois mais uma com o Tutty Moreno, mas nas duas primeiras eu fiquei ali envolvida, era muito jovem, ficava com elas em casa. Nesses grupos, “A Tribo”, por exemplo, tinha grandes compositores, Toninho Horta, Novelli, eu tava lá também compondo, tinha o Nenê, baterista, que também é compositor, mas a liderança e as composições eram do Nelson.
No disco “Nelson Angelo e Joyce”, eu tô ali como vocalista, nem considero muito esse trabalho como meu, tem uma música minha somente, e eu nem toco violão nessa música [risos]. É um trabalho em que eu sou, vamos dizer, uma “coadjuvante luxuosa”, não é que nem outros trabalhos meus que tenho um tipo diferente de protagonismo.

Mila Ramos: "Feminina" foi o primeiro disco em que você teve total controle na produção. Pode-se dizer, inclusive, que é um projeto totalmente seu. Em um período de tanto machismo musical, quais foram os principais enfrentamentos na época? Qual foi o sentimento após o lançamento?
JM: Realmente, “Feminina” foi o primeiro álbum que assumi o controle total, embora eu tenha feito álbuns bastante pessoais anteriormente como o “Passarinho Urbano”, que é um álbum de voz e violão, mas não é um álbum autoral. Eu escolhi o repertório junto do Sérgio Bardotti, o produtor italiano, foi um álbum muito importante, até hoje, um álbum cult, saiu em vinil agora pela Três Selos, uma edição lindíssima, um luxo mesmo.
O “Feminina” é 100% autoral, pessoal, tem minha digital em tudo ali, nos arranjos de base, nos vocais, nos violões que eu toco, na maioria das letras (tem duas letras da Ana Terra, as outras são todas minhas). É um álbum totalmente meu! Meu, meu, meu, meu mesmo!

CA: Algumas de suas composições conhecidas possuem um título em língua estrangeira, a exemplo de "Please, Garçon" ou "Monsieur Binot". De onde surgiram essas inspirações? Existe um motivo?
JM: Não sei. É uma pergunta engraçada essa. “Please, Garçon” foi uma brincadeira feita num barzinho com amigos porque o serviço estava muito lento, e eu fiz essa brincadeira em inglês. “Monsieur Binot” foi uma música dedicada a Vitor Binot, meu professor de ioga. Mas nunca tinha pensado nessa questão do título ser em outra língua.

CA: Qual artista mais influenciou diretamente sua carreira e produção musical?
JM: No violão, basicamente João Gilberto e Dori Caymmi. Foram as duas maiores influências como instrumentista que eu tive. Como cantora, eu falaria do próprio João Gilberto, de Sylvia Telles, June Christy, uma cantora de jazz pouco conhecida mas maravilhosa, e até falei isso outro dia numa entrevista para uma revista estrangeira, citei Miles Davis como uma influência vocal pra mim. Embora ele fosse trompetista, mas a falta de vibrato, a precisão, a maneira do fraseado, essas coisas, tudo isso influencia.
Como compositora, basicamente Antônio Carlos Jobim na veia, como toda minha geração. Nós todos somos filhos dele e da bossa nova, Tom Jobim, Vinicius de Moraes…e antes disso eu lembraria dos sambistas dos anos 1930, com Noel Rosa, principalmente, sendo uma grande influência.

Com Vinícius de Moraes, 1975 / Divulgação: Acervo pessoal da artista

CA: Desde o começo da carreira você conquistou bastante prestígio em diversos países do mundo todo. Você sente diferença no reconhecimento dado à sua obra no Brasil comparado ao exterior?
JM: Sim. Isso não foi nada planejado, eu tive minha carreira brecada aqui no Brasil. Passei por um período longo de boicote por ter processado a gravadora EMI-Odeon, na época, porque eles utilizaram as bases da minha gravação pra um disco de uma outra cantora sem minha autorização e era eu tocando, os arranjos eram meus, os vocais de apoio eram meus, e eu coloquei um advogado pra resolver essa questão e eles tiveram que tirar o disco de circulação. Aí, por causa disso, foi convocado um boicote entre todas as gravadoras majors do Brasil. Isso aconteceu no ano de 1982 basicamente, e durante muitos anos eu fiquei marcada e não pude mais gravar em nenhuma gravadora major no Brasil, tive que me tornar artista independente.
Essa perseguição, esse boicote ao meu trabalho, acabou me levando pro mundo, porque o meu primeiro disco independente, “Tardes Cariocas”, me levou pro Japão, e essa ida ao Japão me levou a vários outros países, Europa, e aí no início dos anos 1990 minha música foi redescoberta pelos DJs de Londres e reviveu. Enquanto isso ela acontecia também nos Estados Unidos, no mundo do jazz, e assim foi. Mas tudo isso começou muito por eu ter sido praticamente expulsa, quase um exílio musical, porque aqui no Brasil ninguém me contrataria mais por esse acordo entre as grandes gravadoras. E acabou sendo bom. É uma coisa muito louca.
Sobre reconhecimento, outro dia eu vi no Spotify, aquele resumo do ano, eu tenho muitos ouvintes no Brasil e no mundo inteiro também. Isso já tá resolvido bastante, eu acho. Penso só que a música que eu faço tem menos popularidade do que poderia talvez no Brasil pelo fato de eu ter passado esses anos todos escondida, o tempo que não pude gravar aqui. Isso é uma situação que hoje em dia não existe mais, mas que naquela época teria sido importante para mim, teria dado um impulso no meu trabalho, foi bem no momento que ele tava bombando nas rádios e tudo, e eu fui impedida, então isso atrapalhou no reconhecimento das pessoas daquela época nos anos que se seguiram. Mas hoje em dia acho que minha música é do tamanho que ela tem, eu não faço música comercial, eu faço música idealista, feita por amor. A música que eu faço é a música que eu amo. Eu sempre digo: eu não fiz carreira, mas eu faço música. 

MR: Se a MPB tem resposta pra tudo, quais respostas a música brasileira te deu e qual seria o tema de 2023 para Joyce?
JM: A música brasileira tem resposta pra tudo e sempre teve, continua tendo. Deixa eu pensar mais um pouquinho e já dou a resposta!


"Os tempos estão duros, mas a gente não precisa ser como os tempos".

MR: Seu novo álbum "Brasileiras Canções" foi lançado no último ano e tem como cenário um país devastado pela crise e pela pandemia. Não é de surpreender que algumas das letras falem do período turbulento atravessado pelo Brasil. Conte um pouco sobre como foi o processo criativo para encontrar poesia no cotidiano que vivemos nos últimos tempos.
JM: “Brasileiras Canções” fala um pouco dessas coisas. Voltando a essas respostas, tem uma faixa no “Brasileiras Canções” que se chama “Todo Mundo”, é a faixa que abre o disco, e ela resume um pouco de uma maneira leve e bem-humorada tudo o que a gente passou. Todo mundo quer tudo: quer saúde, quer amor, quer vida, é o que está dito nessa letra, e todo mundo quer esperar que esse mundo um dia mude. E eu fiz o que pude. É como a música termina, e a gente espera que aconteça. Taí! É uma resposta que minha música pode dar pra esse momento que a gente tá vivendo agora. A gente tá num momento de esperança e pro Brasil especialmente como respostas eu vou de Nelson Cavaquinho: o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente.

MR: "A Chuva Sem Gal" foi composta por você e Marcos Valle poucos dias após a partida de Gal Costa, aos 77 anos. Como foi o processo de canalizar os sentimentos para encontrar inspiração sob forte emoção e transformar dor em canção?
JM: Nós fizemos essa música no dia mesmo que ela partiu. Marcos ficou muito mexido e tava uma chuvinha (como tá hoje, aliás), e ele veio com essa ideia. Fez a melodia, criou a música e me mandou imediatamente. Eu fiz a letra muito emocionada, até chorando, mandei pra ele no dia seguinte. Foi uma coisa de imediato, do sentimento mesmo, da tristeza de ver a perda de uma pessoa tão importante. Para além de uma perda pessoal, da pessoa querida, você vê a perda pro país, pra cultura. Gal tava num momento lindo da carreira, cheia de projetos, planos, e o Brasil precisava da música, da cultura. Nossa música tem sido tão demonizada, falam tão mal da gente, das artes em geral.
Teve tanto esforço em nos transformar em vilões, enquanto os verdadeiros vilões tavam se dando bem, proclamando 100 anos de sigilo sobre os malfeitos deles…e os vilões somos nós, que estamos fazendo arte? Que vivemos da nossa arte? Que levamos o Brasil pro mundo? Tem aí alguma coisa muito errada, né? Vamos combinar. Até perdi um pouco o fio do que estava dizendo, mas é isso: transformar essa tristeza em arte, alegria, e levar isso pro mundo. É isso que a gente faz e vamos continuar fazendo sempre.

Com Hermeto e Egberto, 1977, Morro da Urca (Joyce era da banda do Egberto) / Divulgação: Acervo pessoal da artista

MR: Certa vez você disse: “gravar para que não se perca faz parte da manutenção da memória cultural do Brasil, estar sempre regravando”. Hoje em dia, fazendo um balanço de todos os artistas que já gravou e álbuns que já lançou, qual você considera seu melhor trabalho? 
JM: Não considero nenhum trabalho meu o melhor. Acho que o melhor será sempre o próximo, sempre. Mas eu acho que essa manutenção da memória é muito importante, inclusive criei e apresentei durante quase 15 anos na MultiRio aqui no Rio programas onde eu trabalhava muito isso, a memória cultural do Rio de Janeiro e do Brasil. Então eu fiz várias séries: o Cantos do Rio, que eu ia nas casas dos compositores e dos artistas pra ver a relação deles com a cidade, fiz duas temporadas desse programa que foram lindas, a gente teve até uma audiência muito boa porque passava na TV aberta; depois eu fiz No Compasso da História, que foram 15 documentários de 1h cada um com a história do Brasil sendo contada através da música brasileira, também foi um projeto cansativo, trabalhoso, mas lindo, tenho o maior orgulho de ter feito; depois nós fizemos Pequenos Notáveis, que é um outro projeto que eu adoro, foi feito também em 3 temporadas, eu criei, apresentei, e o co-apresentador era o Alfredo Del-Penho, que também tem uma cultura musical maravilhosa, era sobre a infância dos grandes compositores e compositoras do Brasil.

CA: Completando 75 anos, você se considera realizada ou falta alguma coisa? Como você enxerga a sua trajetória artística?
JM: Bom, realizada eu nunca estou, sempre quero mais e mais. Meu tempo é hoje. Meu tempo é quando?

MR: A música brasileira é tocada nos quatro cantos do mundo, a nossa produção musical é riquíssima e muito vasta. São incontáveis canções, célebres intérpretes, incontáveis compositores e um universo muito particular de gêneros, ritmos e toadas. Para ti, qual a importância da memória musical brasileira?
JM: Acho que a memória musical brasileira é importantíssima para que possam novas gerações se formarem. Isso é uma coisa que tem que manter, tem que continuar, sempre atento, fazendo mais, criando mais alternativas e caminhos pra que isso se realize. Nós passamos agora por um período terrível, sofrido, onde além da pandemia, que nos impediu de viajar, fazer os concertos e tudo, a gente foi tremendamente sabotado, triturado por um governo que era anticiência e anticultura, e agora a gente tá na esperança de retomar nossos trabalhos, de que o Brasil reconheça esse tesouro maravilhoso que é a música popular brasileira, o mais importante que a gente tem. É um tesouro que pertence à população brasileira e influencia o mundo inteiro, e que não faz ideia da grandeza da arte.

Ao fim da entrevista, ainda teve tempo de um merchan: Joyce anunciou que de março a junho estará fazendo um curso de extensão na PUC-Rio: “Palavra e Som - Estudando as Letras da Canção Brasileira”, unindo música e literatura ao analisar como essas letras servem como uma resposta para a memória e o seu próprio tempo. Todas as segundas, a partir de 13/03, online. Mais informações em breve!

A equipe do IMMuB só tem a agradecer à artista por todo carinho e generosidade nesta entrevista, uma das mais memoráveis que já fizemos. Feliz aniversário, Joyce!



Fotos: imagens cedidas pela cantora/Divulgação | Foto de capa: LEO AVERSA / Agência O Globo / Reprodução da internet

Mila Ramos é fascinada por música e foi em seu trabalho com bandas cover em 2012 que encontrou uma nova paixão: o Music Business. Especializou-se em Marketing e Design Digital pela ESPM-RJ e somou seus conhecimentos ao mundo musical como Produtora Artística. Em 2017, entrou para o Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB). Lá chegou ao cargo de Coordenadora de Comunicação e, sob sua gestão, conquistaram o Prêmio Profissionais da Música 2019, e o Programa Aprendiz esteve entre os finalistas de 2021.

Caio Andrade é graduado em História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ) e Assistente de Pesquisa e Comunicação no Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) desde 2020Grande apaixonado por samba, pesquisa sobre o gênero há mais de uma década, além de tocar em rodas e serestas no Rio de Janeiro.

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