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'Peguei a reta': as intensas luminosidades do choro do Paulo Sergio Santos Trio

quinta, 09 de setembro de 2021

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Há quem rotule o choro de “jazz brasileiro”, por sua abertura a improvisos e densidade estrutural. No mínimo, um desrespeito com a cronologia, já que a primeira gravação oficial do gênero americano, com as músicas “Dixie jazz band one step” e “Livery stable blues”, pela banda Original Dixieland, foi lançada num disco, de fevereiro de 1917. A sintonia histórica, no caso, seria com o registro do primeiro samba protocolar, “Pelo telefone” (Donga/Mauro de Almeida), por Baiano, em novembro de 1916, nas ruas, no começo do ano seguinte. Ambos ainda eram híbridos de tendências diversas, em efervescência lá e cá. Mas, antes mesmo da chancela fonográfica, em 1870, o flautista Joaquim Antonio da Silva Callado (1848-1880) já circulava com seu grupo Choro do Callado. Ou seja, quase meio século antes, o composto de polka, tango, habanera, lundu, quadrilha, schotisch, tocado de forma “chorada”, já se infiltrava nas fundações da música popular brasileira. E, claro, por sua intensidade harmelódica, trazia empréstimos de fontes eruditas diversas. Uma encruzilhada fascinante, em constante progresso, que deságua no recém lançado delta instrumental de “Peguei a reta” (Kuarup), o novo disco do Paulo Sérgio Santos Trio.

Foto: Divulgação

A começar pela formação, o grupo já surpreende, para um estilo, que era inicialmente balizado por flauta, cavaquinho e violão. Ao lado do líder, o clarinetista virtuose Paulo Sérgio Santos, alinham-se seu filho, o violonista, também exímio em seu instrumento, Caio Marcio Santos, e mais Diego Zangado, alternando bateria e percussão com meticulosa e minimalista perícia. A própria trajetória de Paulo Sérgio já decupa o banquete de signos do enclave. Ele começou, aos 4 anos, numa gaita, tocando hinos em igreja, no bairro carioca de Madureira, onde foi criado. Iniciou-se na clarineta com o maestro da banda do templo, e estudou com o mestre do instrumento, José Botelho, que o indicou ao grupo erudito/popular Quinteto Villa Lobos. Elogiado pelo ícone da clarineta no choro Abel Ferreira, aos 18 anos, Paulo Sérgio já ocupava o posto de primeiro clarinetista da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal, do Rio.

Tocou saxofone com apenas 15 dias de estudo para participar da Orquestra Filarmônica Mundial, que realizou um concerto na cidade sob regência do ilustre maestro franco americano Lorin Maazel, em 1985. Seu disco O Trio, registrado em Paris, em 1994, em parceria com o violonista Mauricio Carrilho e o bandolinista Pedro Amorim, arrebanhou prêmios, assim como o solo seguinte, “Segura ele”, com participações do violonista Raphael Rabello, o percussionista Marcos Suzano e o baterista Tuti Moreno. Gravou outros títulos com o Quinteto (“35 anos de música brasileira”, “Fronteiras”, “Quinteto Villa-Lobos convida”) e solos (“Gargalhada”, “Um sopro novo”), além de participar de vários álbuns do compositor e violonista Guinga, como “Casa de Vila”, onde fez um arranjo para oito vozes e tocou todas as clarinetas e saxofones.
          
O repertório de “Peguei a reta” (clássico de 1948, do trompetista paraibano Porfírio Costa, que integrou a Orquestra Tabajara) vadeia entre a ortodoxia e a inovação. Do precursor carioca Ernesto Nazareth, “Apanhei-te cavaquinho”, consoante com o título desafiador, flui por outros meandros, na triangulação de sopro, violão e pandeiro. Do magistral conterrâneo Pixinguinha (em composições assinadas com o flautista Benedito Lacerda), dois temas menos conhecidos, o amaxixado etílico “Seu Lourenço no vinho” e “Cheguei”, entre volteios e arremetidas de clarinete. Outro mestre escola anfíbio, o erudito gaúcho Radamés Gnattali, de longeva atuação na área popular, fornece as escalas ondulantes de “Remexendo”, pontuadas nos couros do ritmo sincopado.
          
Matriz da clarineta no choro, o mineiro Abel Ferreira celebra sua terra na onírica “Luar de Coromandel”, levada por Paulo Sérgio Santos solitário com seu sopro. Ainda mais lânguida, com introdução de violão seresteiro, “Eu quero é sossego”, da dupla potiguar K-Ximbinho e Hianto de Almeida, contrasta com os acidentes do clima de gafieira da seguinte “Um chorinho em aldeia”, do maestro pernambucano Severino Araújo, que soube associar choro e swing jazzístico. Mestre do acordeon, o paraibano Sivuca contribui com dois temas acendrados, “Cabaceira, mon amour (Cheirinho de mulher)” e “Dino Pintando o sete cordas” (ambos em parceria com sua mulher Glorinha Gadelha), este em homenagem ao lendário Horondino Silva, titular da modalidade de violão que pontuou boa parte da baixaria da MPB tradicional. Do carioca Guinga (com Aldir Blanc) é o intrincado e belo “Cheio de dedos”. Paulo Sérgio (“Samba da lua”) e o filho Caio Marcio (com o abaionado “Terra seca”) também exibem pérolas de lavra própria, em meio a tantas luminosidades deste “Peguei a reta”. Um disco a ser percorrido várias vezes, cada uma delas com achados recônditos a serem desvelados a seus privilegiados ouvintes.    

Tárik de Souza

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