Cultura

João Pernambuco: 135 anos do poeta do violão

sexta, 02 de novembro de 2018

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Título que expressa parte da grandeza de João Pernambuco, grandeza que transcendia sua época e que será sempre fonte inesgotável para todo aquele que se interesse seriamente pela evolução da nossa música e da técnica do violão.

A arte do Poeta do Violão é natural, simples e espontânea e nela está contida toda sua característica musical, técnica de harmonização e violonística. Porém, não há nisso uma forma acadêmica, pois João Pernambuco não teve escola tal como se concebe em seu aspecto formal; contudo, seu trabalho foi tão importante que tornou-se por si mesmo uma escola. Por esta razão apresentamos este capítulo dentro do espírito da obra de João Pernambuco, ou seja, de forma não acadêmica. Além disso o caráter atual de sua música está contido nos depoimentos de alguns músicos e instrumentistas que por si só manifestam a expressão viva de sua contemporaneidade, quer por estar interpretando hoje suas obras, quer por se considerarem por ele influenciados. O violonista solista Turíbio Santos, que vem desenvolvendo um trabalho de edição acompanhado de pesquisa fonográfica das obras de João Pernambuco, nos revela em entrevista concedida a 22 de julho de 1980, da qual participou também o violonista João Pedro Borges:

Pernambuco começou a me interessar desde que comecei a tocar violão, porque o repertório de todo violonista brasileiro que se preza tem que ter Sons de Carrilhões. É Sons de Carrilhões, Jongo; mas era principalmente Sons de Carrilhões que eu ouvia sempre, eu acho que a isca da obra de João Pernambuco é Sons de Carrilhões. Aliás, Sons de Carrilhões é o som do eixo do carro de boi e não som de sino. O eixo do carro de boi em fricção com a madeira é que dá aquele barulho, aquela coisa monótona que por exemplo aparece no filme Vidas Secas, aquilo que é o som de carrilhão do choro de João Pernambuco”.

Com esta informação podemos avaliar a sensibilidade de João Pernambuco que, por exercer a profissão de ferreiro, muitas vezes fez e consertou eixos de carro de boi, possibilitando-lhe o conhecimento da matéria. João soube aliar a isso sua grande sensibilidade musical, extraindo e transformando um componente de sua realidade em música. Turíbio retorna a palavra:

“Então eu comecei a me interessar por causa de dois choros e depois foram me dando outras fotocópias de choros como Dengoso, por exemplo, ouvi a gravação de Jacob do Bandolim de Graúna, e Jacob me falava sempre de João Pernambuco e eu comecei a colecionar isso. E através de amigos como Hermínio Bello de Carvalho, Jodacil Damaceno, Nicanor Teixeira, João Pedro Borges que trouxe do Maranhão o que ele tocava de ouvido, o professor tinha ensinado para ele o Pó de Mico, ele foi se lembrando devagarzinho e nós escrevemos a música. Outra pessoa que forneceu muito material foi Ronoel Simões, de São Paulo. Ronoel é uma pessoa que tem urna das maiores coleções do mundo de fitas gravadas de violão, inclusive tem muita documentação fonográfica sobre João Pernambuco, que permitiu a Continental lançar um disco, me permitiu reconstituir muitas musicas de diversos artistas que ele me passou e eu pude preparar, corrigir os manuscritos. Depois outras informações sobre João Pernambuco vieram através de Arminda Villa-Lobos que me contou que uma vez no final da vida de Pernambuco, Villa-Lobos fez uma reunião na qual Pernambuco estava presente e tocou das nove horas da noite até as três da manha as musicas dele. Villa-Lobos queria escrever e Pernambuco se recusava por medo que roubassem. Outro elemento que me impressionou muito também foi o fato de que, na Europa, há anos circulava Sons de Carrilhões; do Jongo eu cheguei a ver cópias manuscritas e fotocópias como sendo ou autor anônimo brasileiro ou Choro n°2 de Villa-Lobos, porque o Choro n°1 tocava no mundo inteiro e o pessoal que ouvia achava que era o segundo choro, de Villa-Lobos também.

Eu acho que João Pernambuco tinha dentro de seu choro um caráter meio nordestino. Diferenciava-se muito de Nazareth, pois este era muito carioca, cosmopolita como choro, enquanto Pernambuco era mais raiz, como um diamante bruto, era a força da natureza. Porem tem um choro dele que é bem carioca, mas se você pegar Dengoso, Jongo, eu já ouço muito nordestinamente, com uma característica muito africana.
A característica principal da música de João Pernambuco é o ritmo. Com o ritmo ele constrói a harmonia e com a harmonia ele constrói a melodia. Por exemplo, quando ele começa o Jongo ele vem com a harmonia e dentro de uma sequencia de acordes aparece a melodia. O mesmo ocorre com Sons de Carrilhões. Com o ritmo ele vai dentro da harmonia e extrai a melodia. Outra característica é que os choros de João não são muito melodiosos, por exemplo, o Pixinguinha fazia choros muito melodiosos, mas João não, quer dizer, a característica de Pernambuco a rigor não e a melodia que é sempre decorrente do ritmo ou da harmonia. 

A técnica de harmonização de João Pernambuco, a rigor, e uma harmonia clássica tradicional, mas ele tinha um elemento impressionante que apresentava no violão que era o cromatismo, que consiste em fazer uma posição, por exemplo, em Mi com a ultima corda sem estar presa e a partir daí vai subindo ou descendo e neste mesmo acorde vai modulando e ao mesmo tempo fazendo o ritmo com a mão direita. Eu acho que é praticamente João quem fez isso, e eu não vi isso nas músicas de Barrios, eu não vi isso em nenhuma música, isso foi realmente uma criação do João e do Villa-Lobos, quer dizer, mais do João do que do Villa-Lobos”.

Complementando o depoimento de Turíbio, o violonista maranhense João Pedro Borges conclui: 

“No Nordeste a preocupação dentro do estudo do violão e como estilo, na forma de se interpretar, preocupamo-nos também com a harmonia e a melodia, mas principalmente como estilo. Talvez seja uma herança da maneira nordestina de se tocar da qual João tem uma característica muito forte”.

Outro que da sua contribuição para a analise da obra de João Pernambuco é o jovem violonista de 7 cordas Rafael Rabello que, com seus 17 anos, por si só expressa de forma concreta a influencia e o caráter atual da música de João Pernambuco:

“Conheci a obra de João Pernambuco ouvindo Dilermando Reis, e aos dez anos, quando conheci o Meira, perguntei-lhe se sabia tocar músicas de João Pernambuco. Aí ele me ensinou uma porção de músicas de João e nunca mais eu vou deixar de aprender João Pernambuco. Para a pessoa que toca violão o que desperta para João Pernambuco e justamente a maneira como ele tira o efeito do instrumento, por exemplo, aquela entrada de Sons de Carrilhões e a coisa mais simples do mundo, mas ai é que está a dificuldade, é tão simples que é muito difícil de se dar a interpretação certa. A música de João Pernambuco deveria ser mais divulgada e ter mais edições, eu acredito que se os professores de violão passassem a seus alunos, o instrumento ganharia muito, pois trata-se de uma escola de violão, uma técnica muito brasileira de tocar, e de uma importância. A música de João Pernambuco não morreu, não pode morrer, quem quiser tocar choro no violão vai ter que tocar João Pernambuco, de uma maneira ou de outra vai passar por João Pernambuco.

O choro geralmente tem muita semicolcheia, mas nas músicas de João, além das semicolcheias tem o lado da canção, você vê que um choro de João Pernambuco chamado Dengoso tem uma terceira parte induvisada, uma canção mesmo, uma toada, e tudo nota branca; isto é um caminho que na época não se usava no violão e veio do Nordeste, isso não era usado no choro, eu acho que esta foi uma contribuição de João Pernambuco. Agora, o grande mérito de João está na simplicidade, fazia bonito simples, que é a coisa mais difícil, complicar e fácil, agora, fazer bonito como ele faz no instrumento, é difícil. Geralmente quando se faz música no violão é difícil porque as pessoas querem fazer a música na lógica e ai torna-se difícil ficar simples porque fica muito violonístico e João era muito violonístico, mas era simples, podemos cantar a música dele sem violão, podemos tocar Dengoso e Graúna no bandolim.

João Pernambuco é um enigma. Como pôde ele fazer toda aquela obra, ter aquela consistência harmônica que ele tinha, naquela época? Considerando a formação que ele tinha, que era de esquina, de rua, João prova aquela tese de que o autodidata vai mais longe. João Pernambuco era urna antena, ele captava tudo que podia ouvir, e aplicava tudo com a maior naturalidade. João tem certas delicadezas que para gente que estudou ou que estuda música não é nada, pois pra gente já tem muita coisa pronta para se estudar. Mas João Pernambuco naquela época usava efeito harmônico em trechos imensos de suas músicas. Suas músicas eram com construção harmônica e solos todos feitos em harmônicos. Alem disso João tinha um swing, um efeito que ele tirava do violão que era só dele. O desenho rítmico que João Pernambuco dá no violão é um algo hibrido, ficaria entre Nordeste e Rio de Janeiro, ele juntou um pouco do choro, do baião e do samba que na época não era bem definido, no Jongo sente-se muito isso. Na música Estou voltando, que é parceria de João com Donga e Pixinguinha, percebe-se dois caminhos diferentes porque o Donga e muito parecido com o Pixinguinha, apesar do Donga ser mais simples harmônica e melodicamente tem trechos na música que você sente serem muito Nordeste, você sente que é um elemento que é do João mesmo. Ele tinha um balanço, um tipo de swing, que era algo que estava além de sua época, mas ao mesmo tempo estava próximo dele por causa de suas raízes do Nordeste; ele criou espontaneamente, sem querer, foi a soma de toda informação que ele tinha. Em suma, João Pernambuco é soma de Nordeste, maxixe e choro, com influência carioca, e isso faz com que haja um caminho só dele. 

João tinha uma intuição muito forte, em termos de contraponto; no Jongo, por exemplo, ele fez um segundo violão que é para tocar junto com o primeiro que é solo, que o Meira inclusive toca, e uma série de contrapontos que enquanto o violão solo está fazendo uma parte grave o outro esta no agudo e vice-versa, nunca fica na mesma tessitura, enquanto um está a tempo o outro está a contratempo. João Pernambuco passou pela peneira do tempo, que só passa e fica quem é verdade".

A obra musical de João Pernambuco para alguns demorou a chegar, mas para outros chegou cedo. Este e o caso de Jose Wilson Cirino, instrumentista, violonista, compositor, músico e arranjador cearense de Aracati que depõe sobre a importância da obra de Pernambuco para o violão e para a música, em entrevista realizada em 18 de agosto de 1980:

"Travei meu primeiro contato com a obra de João Pernambuco aos quatro anos de idade, quando então acompanhava meu pai em serões realizados em minha casa lá no Ceara, nos quais se tocava obras de Ernesto Nazareth, Luperce Miranda, Jacob do Bandolim, Chiquinha Gonzaga e João Pernambuco.

A obra violonística e de composição de João Pernambuco eu considero assim como um pilar de compreensão da música instrumental brasileira. Primeiro é por causa da época em que João tocava isso tudo, ele mostrava suas músicas, suas próprias composições, como um instrumentista de primeira linha, sem defeitos, quer dizer, era estilista, chega a ser estilista. Na parte instrumental João realmente é um achado dentro da música, ele reúne toda a informação que pegou de esquina, quer dizer, por onde ele passou, e da um tom, um estado de espírito, muito pessoal, a partir do momento em que começa a tocar, compor para o instrumento e desenvolver esse trabalho musical. João tem uma técnica muito dele, ele não estudou técnica de violão, assumiu tudo a partir de como ele viu e sentiu a emoção e fez; quer dizer, esse caráter técnico instrumental e puramente dele. Quanto ao aspecto de composição, João Pernambuco é um compositor galgado dentro das muralhas brasileiras, frisando centralmente o Rio de Janeiro porque a brasilidade que eu vejo dentro da composição de João me toca muito Ernesto Nazareth, me toca Chiquinha Gonzaga em parte. E como compositor de primeira linha desses que falei, João esta também na primeira linha, tranquilamente.

A trajetória de João foi dificultada porque a música instrumental nessa época, principalmente a do violão, era marginalizada pela própria sociedade. Hoje está ai a obra de João, todo mundo reconhece quem é João, quer dizer, a pessoa sensível vai lá e ouve, reconhece e sabe que existe o valor dele, esta na história. Quanto aos arranjos que também são partes da composição na música, João faz arranjos de violão para as melodias de violão; a gente vê que ele acentua muito nos baixos em cima da melodia, ou seja, o baixo contraposto, que é uma linha de contraposição em que a melodia fica embaixo e sobre a melodia fica o baixo. E então isso gera uma maneira de harmonização, na época chamava-se acompanhamento, hoje chama-se harmonia. João fazia arranjos para as músicas dele e muito bem feitos, ele interpretando é incrível, chega a ser uma coisa muito especial. Não quero falar de ninguém, mas, uma música de João Pernambuco tocada por outro violonista não seria tão bem tocada como por ele, porque além do estilo dele ser muito pessoal, os outros instrumentos fogem muito dessa área de interpretar como o autor interpreta, que eu acho importante, o interprete deve criar o clima do compositor primeiro e em seguida criar o seu, mas não pode fugir de como ela foi feita, desde a emoção ao gráfico. 

João Pernambuco está ai, quem tiver ouvido que ouça, não precisa explicar, ele tem todo um lugar merecido dentro da história da musica popular brasileira".


**Texto extraído do livro “João Pernambuco – Arte de um povo” de autoria de José Leal, obra vencedora do Concurso Nacional de Monografia promovido e lançado pela FUNARTE em 1983.



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