Um papo com o Cazes

O piano e a mentira

domingo, 03 de setembro de 2017

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Ele é o mais completo dos instrumentos musicais e, curiosamente talvez por isso mesmo, também é território fértil para toda sorte de empulhações. Na música popular pelo mundo afora tivemos pianistas que fizeram e fazem um sucesso desmedido, desde Carmen Cavallaro e Liberace a Richard Clayderman. Um festival de banalidades musicais que atraem milhões de fãs. No Brasil, um pianista maiúsculo como Radamés Gnattali sofria na década de 1950 com a baixa vendagem dos seus discos. Um dia o compositor Braguinha, diretor artístico da gravadora Continental se lamentou com ele:

_ Puxa Radamés, queria tanto que seus discos vendessem igual aos do Waldir Calmon

A resposta foi bem ao estilo realista/pessimista do maestro:

_  Não adianta não, Braguinha, o pessoal percebe logo que eu toco bem.

Outro dia entrei no cinema para ver um filme argentino e assisti ao trailer de “João, o maestro”, produção nacional ao que parece de bom acabamento técnico e que contaria a trajetória do pianista João Carlos Martins.

A primeira vez que ouvi esse nome foi em 1983 na sala da moça que dirigia o selo internacional da gravadora Polygram, que lançava os títulos clássicos e por onde saiu o disco “Tocar” da Camerata Carioca. Entrei na sala e imediatamente recebi um pacote com vários Lps do pianista tocando Bach. Ela me entregou o pacote apontando para um canto no chão da sala e dizendo:

_  Quer levar mais alguns? Preciso me livrar disso. O cara paga a gravadora para lançar os disco dele e acaba ficando esse entulho aqui.

Peguei o pacote e fui ouvir em casa. Como vocês sabem, não sou especialista em Bach ou em música de concerto, mas não precisava mesmo ser para perceber que se tratava algo muito, muito fraco. Tentei trocar os Lps no sebo que frequentava no Largo de São Francisco, mas lá não aceitaram. 

Passam os anos e em 1993 o nome do pianista ganha as manchetes por causa do escândalo do esquema Paubrasil, nome da produtora que pertencia a ele e que foi usada para irrigar campanhas de candidatos malufistas. Um esquema engenhoso havia funcionado para driblar a então vigente proibição do financiamento de campanha por empresas, através de notas frias da Paubrasil, simulando prestação de serviços. Acredita-se que 400 candidatos a deputado estadual e federal tenham sido beneficiados no esquema. É bem possível que parte do Centrão, que ainda está por aí a atrasar o país, tenha se viabilizado através desse esquema.

Com bons advogados e uma justiça que não pune pra valer os ricos, o escândalo foi transformado em crime fiscal, pagou-se multa, o pianista deu uma sumida e depois voltou como se nada tivesse acontecido. 

Preocupado com sua biografia, tratou de produzir a sua versão em livro e filme, inclusive para os problemas de saúde que lhe impediram de continuar tocando mal. Naturalmente deve ter usado financiamento público para o filme, mas isso é outro assunto, outra coluna.

Em tempo, Radamés Gnattali morreu em 1988 aos 82 anos, ainda pagando as prestações do apartamento em que morava e não tinha um piano de cauda em casa. Ele tinha razão, a mentira no piano rende mais.


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