Colunista Convidado

O “Partido Alto” farpado e brilhante de Douglas Germano com Batuqueiros e sua Gente

quarta, 27 de julho de 2022

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Gênero de samba versejado, apoiado num refrão, geralmente acompanhado por palmas rítmicas, o partido alto, aparentado ao desafio nordestino, vem de longe. Desde os ancestrais “Batuque na cozinha”, de João da Bahiana (filho de uma das tias festeiras da Praça Onze), e a chula raiada (o partido primitivo) “Patrão prenda seu gado”, parceria dele com Pixinguinha e Donga, a Noel Rosa, um dos primeiros chamados “sambistas do asfalto”, a pratica-lo, em “De babado” (parceria com João Mina), num dueto com Marilia Batista, em 1936. Jamelão fez sucesso com “O samba é bom assim" (Helio Nascimento/ Norival Reis), em 1959, e “Quem samba fica”, que assinou com o baiano Tião Motorista, em 1970. D. Ivone Lara alçou voo em seu “Tiê” (com Fuleiro e Tio Hélio) e, além do samba satírico do pernambucano Bezerra da Silva, toda a safra de pagode gerada a partir do Cacique de Ramos (Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Sombrinha) ancorou-se no gênero, que projetou Martinho da Vila, e foi emoldurado no título do disco de dois exímios praticantes, “O partido muito alto de Wilson Moreira e Nei Lopes” (1985). Já o mestre ortodoxo do gênero, Aniceto do Império, dizia que, após gravado, o partido alto perdia sua autenticidade, justamente por não ter mais a livre improvisação dos versadores.

Acompanhado pelo conjunto local Batuqueiros e sua Gente, o paulista Douglas Germano lança seu manifesto, o álbum “Partido alto”, onde renova o gênero sem deturpa-lo. O punho negro fechado, erguido na foto da capa, não deixa dúvidas: “Brotado do solo cotidiano não se alheia da lida. Pelo contrário. Desvela fissuras, vislumbra atalhos, tensiona saídas. Não romantiza o precário; desbanca desditas”, crava Everaldo. F. Silva na contracapa. “Chegou a hora do pau quebrar’ (“eu quero ver quem vai fugir, quem vai ficar, quem vai bater”), anuncia, sob ritmo intenso e cadenciado, logo a faixa de abertura, como as demais nove, de autoria do solista (três delas em parcerias). Aberta por um canto de trabalho recolhido pelo cineasta Leon Hirszman, “Canaviá”, calcado no surdo e adufe, irradia um ambiente intoxicante; “A fuligem da queima vai pro peito/ avermelha o olho do peão/ que trabalha virado num carvão/ e nem dez litros de água dá jeito”. 

Douglas Germano e os Batuqueiros e sua Gente (foto de Dudu Contreras)

Em tais partidos farpados – e nos que veremos adiante – Germano, natural de Vila Matilde, nada de braçada, respaldado por 16 poderosos aliados de vários cantos da cidade e do estado, reunidos no Batuqueiros e sua gente. São eles: Marcelinho Motserrat (violão de 7 cordas), de Artur Alvim, Gian Correa (violão de 6), da Bela Vista, Vitor Casagrande (Bandolim), de Piracicaba, assim como Xeina Barros (pandeiro de nylon, congas e ganzá). Titular do cavaco Paraguaçu, Henrique Araújo é da Pompéia, Marcelinho, do cavaco com afinação de bandolim, de São Caetano do Sul. Nos trombones, Allan Abadia (Itaim Paulista) e Pedro Moreira, do Imirim, como seu irmão Raphael (surdo). Procedente do Morro de Itaúna, em Osasco, Sidnei Souza ronca a cuíca, Alfredo Castro  (Guarulhos) retine o repique de anel, Roberto Amaral (Campinas) percute o pandeiro, Rafael Toledo (Avaré) multiplica-se em congas, adufe e reco-reco. 

A pontuação vem dos tamborins de Tiganá Macedo (Guaianazes) e Geraldo Adriano Campos (Santana). Junior Pita (São Bernardo do Campo) assina um dos elaborados arranjos. Os outros são de Pedro e Rapha Moreira, Allan Abadia, Alfredo Castro, Gian Correa, Vitor Casagrande e Henrique Araújo. Inspirado por mestres como Dino 7 Cordas, Luciana Rabello, Gordinho, Doutor, Marçal, antes de Germano, eles já fizeram parcerias com a cantora Francineth, a bordo de seu primeiro disco, em 2019, e com os bambas Nelson Sargento e Zeca Pagodinho.

Douglas Germano aprendeu cavaquinho ouvindo discos e músicos das rodas de samba de São Paulo, e violão com Ruy Weber. Mas sua estreia foi carioca: em 1991, o grupo Fundo de Quintal gravou “Vida alheia”, que assinou ainda sob o apelido Cuca, que ganhou no futebol de várzea. Teve um longo percurso no teatro em espetáculos como “O mistério do fundo do pote”,” Torre de Babel”, de Arrabal, da Cia de Teatro X, onde ficou como diretor musical por dez anos, compondo trilhas para “Zumbi”, “Espólio”, “Bando de Maria”, “O Cobrador” e “Calígula”, finalista do Prêmio Shell de 2003 na categoria de melhor trilha original. Em 2004, o guitarrista e compositor vanguardista Kiko Dinucci o convidou para integrar o Bando Afro Macarrônico, com quem gravou o disco “Duo Moviola”. O primeiro solo de Germano, “ORÍ” saiu em formato digital, e valeu a ele a indicação a “Melhor cantor de samba”, no 23º Prêmio da Música Brasileira. Lançada por Elza Soares, no disco “A mulher do fim do mundo”, de 2015, sua composição “Maria de Vila Matilde” ganhou os Prêmios Multishow e MTV de melhor música do ano, e ainda foi indicada ao Grammy Latino, na categoria “melhor música em língua portuguesa”. 

Seu segundo solo, “Golpe de vista”, com orquestração minimalista (violão, cavaco, caixa de fósforos), lançado de forma independente, foi muito bem recebido pela crítica e indicado ao Prêmio APCA, de 2016. Também aclamado, o petardo “Escumalha”, o disco anterior, de 2019, teve repercussão foi podada em parte pela chegada da pandemia. Além dos supra citados Fundo de Quintal, Elza Soares e Kiko Dinucci, músicas de Germano foram gravadas por Juçara Marçal, Thiago França, Carlinhos, Vergueiro, Marcelo Pretto, Juliana Amaral e Paula Sanchez.

"Partido alto”, registrado ainda sob o domínio da peste em abril de 2021, teve direção musical de Henrique Araújo, mixagem e masterização de Gian Correa. “Foi uma experiência inédita, um quebra-cabeças”, descreve Germano os artifícios usados para driblar a contaminação da Covid 19. As bases dos arranjos escritas num programa de edição de partituras permitiram que os músicos pudesses ensaiar à distância, em suas próprias casas, antes de serem gravados em horários separados. Mas é praticamente impossível notar a diferença deste “Partido alto” para um disco “ao vivo”, com todos os músicos juntos no estúdio, como numa roda de samba.

O álbum esbanja coesão. Uma argamassa sonora sólida e semovente linka Douglas e os Batuqueiros. Seja em composições mais afeitas ao folguedo e ao lirismo como o “Partido da feira” e as acopladas “Minas Gerais não tem mar”, “Jaci e maré cheia” (com Milton Conceição) ou o turbilhão de desavenças amorosas de “Onde tu pensa que vai?”. Mas, fiel ao punho cerrado da capa, a maioria doa partidos, são puro fio da navalha. Por serem muito bem articulados, sob alternância meticulosa de instrumentos e climas, com versos disparados por vozes diversas do grupo, a sangue quente, ferem ainda mais. E ficam longe do panfleto. 

Como no corrosivo “Falha humana”, de assertiva introdução instrumental, onde a corda arrebenta sempre do lado mais fraco: “Pino era de aço e no meio rachou/ o andaime despenca, Zé também desmontou/ o doutor leu o laudo, mais tarde, na televisão/ e lá foi constatado/ José, o culpado da situação”. Ou no sobressalto de “O tempo fechou” (também com Milton Conceição), sublinhado por melífluo trombone: “Recolhe a bermuda de Vado/ que o arame farpado na fuga rasgou/ pega a jaqueta de Sacha, que a bala é borracha/ mas quase furou”. E no devastador “Capitão do mato”, pontilhado por agogô e tamborim, onde a maestria de Germano delineia uma das maiores contradições sociais do país, na figura paradoxal dos oprimidos opressores: “Tá de farda/ capitão do mato monta guarda/ no banco, na concessionária/ e na porta do hotel, no shopping/ no supermercado/ e pra quem já tem voz/ ele nem parece um de nós”.


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