Resenha de Samba

1º Intelectual Orgânico do Samba, J. Muniz Jr. é biografado

segunda, 15 de janeiro de 2024

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Livro sobre um dos maiores pesquisadores de Samba de todos os tempos é lançado por Jadir Muniz de Souza

Autor de livros fundamentais sobre a história do Samba, J. Muniz Jr. não é o que se pode chamar de intelectual tradicional. Longe da figura do estudioso que vive a maior parte do tempo no escritório, se valendo apenas de informações que encontra em livros, Muniz sempre foi além. Antes de pesquisador do assunto, Muniz é sambista, missão que passou a cumprir com devoção a partir do decantado decênio de 1940. Isso significa que entende como ninguém dos naipes de tamborim, fraseados de cuíca, batidas de surdo e, principalmente, das dificuldades materiais desse meio. Para escrever suas obras, deu início na década de 1950 a uma verdadeira peregrinação nos morros e subúrbios de Santos, São Paulo e Rio de Janeiro, convivendo de perto com a realidade das Escolas de Samba e dos sambistas. Atuando na imprensa santista a partir de 1960, passou a documentar tudo o que via, ouvia e vivia, tornando-se em 1976 consagrado autor de livros sobre Samba, o que está muito bem retratado em “A Saga do Marechal do Samba, J. Muniz Jr.”, obra que Jadir Muniz de Souza acaba de publicar. 

Biografia de J. Muniz Jr., livro de Jadir Muniz de Souza

Por isso, hoje, para conhecer melhor a história do Samba, necessariamente é preciso passar pela obra de J. Muniz Jr., para quem o Samba é uma religião e os grandes sambistas, semideuses.

Nascido no ano de 1934 no interior de Alagoas, J. Muniz Jr. iniciou em 1948 sua caminhada como sambista em blocos de carnaval na cidade litorânea de Santos (SP). Muniz já confraternizava com sambistas bem antes da necessidade de retratá-los. É que Muniz vivia sob certo encantamento do Samba, o que o levou a querer conhecer os bambas que tanto ouvia falar. Para isso, empreendeu grandes sacrifícios, como sua primeira ida ao Rio de Janeiro em 1953, numa viagem de trem na segunda classe, dormindo em bancos de madeira, ingerindo apenas cafezinho como alimentação durante 14 horas de trajeto.

De joelhos, Muniz empunha a cuíca no Morro da Mangueira junto a Mestre Waldemiro, Geraldo das Neves, Preto Rico e outros | Acervo J. Muniz Jr.

Repetiu a dose visitando diversas agremiações do Rio em muitos outros anos. Muniz era bem chegado por onde passava: na Mangueira era recepcionado calorosamente pelo Mestre de Bateria Waldemiro; na Portela tinha a confiança de Seu Natal; no Império Serrano, as bênçãos de Tia Martha e, no Salgueiro, o compadrio do fundador da Academia, Moacyr Lord.

Como sambista, sua evolução foi notável. Em 1955 passou a integrar a Escola de Samba X-9 de Santos, onde principiou como ritmista tocando tamborim, surdo, tarol, agogô, chocalho, reco-reco, até assumir a cuíca, instrumento que lhe conferiu fama entre seus iguais. Ainda na X-9, ao longo do tempo foi passista, Mestre-Sala e Diretor de Terreiro.

J. Muniz Jr: “Trago no sangue o micróbio do Samba / Tenho também o Diploma de Bamba / Sambando hei de morrer” (Marques Balbino da Portela) | Acervo J. Muniz Jr.

Em 1956, com apenas 22 anos, assumiu a enorme responsabilidade de ser o autor do enredo com o qual a Escola de Samba X-9 desfilaria, com base em rigorosas pesquisas históricas. Embora com escolaridade modesta, Muniz passou a desenvolver cada vez mais a sua formação de autodidata no desempenho dessa atividade. Por isso, escrever sobre Samba seria seu próximo passo natural.

Em 1962, o editor chefe do jornal santista O Diário, Antonio Nunes, que como cronista carnavalesco assinava Lord Lobisomem, ofereceu-lhe emprego de redator. Muniz havia estudado até os primeiros anos do antigo ginásio, o equivalente ao 6º ano do ensino fundamental de hoje. Porém, toda a sua formação na faculdade da vida fez com que ele se tornasse o competente e talentoso jornalista J. Muniz Jr., que passou a atuar sempre pautado pela verdade, rigor histórico e na defesa abnegada do Samba.

J. Muniz Jr. é discípulo fiel de Paulo da Portela | Acervo J. Muniz Jr.

Com a credencial de jornalista, o intercâmbio cultural com os sambistas do Rio de Janeiro se intensificou ainda mais. Muniz foi um dos mais articulados Relações Públicas do mundo do Samba, sendo um verdadeiro seguidor de Paulo da Portela (1901-1949) neste sentido. Com o poder público e o setor privado, negocia patrocínio para que Escolas do Rio de Janeiro se apresentassem em Santos. Dessa maneira, por seu intermédio, a Escola de Samba Império Serrano realizou a sua primeira viagem interestadual, apresentando-se com um grupamento na cidade santista, em 1962. Em 1966, conseguiu o feito incrível de levar mais de 1.000 integrantes da Portela para um desfile em Santos.

Quando Muniz não conseguia incentivo financeiro por vias oficiais, sua consideração no mundo do Samba prevalecia. Foi assim que em 1968 no II Carnaval em Maio no Méier, o sempre bem relacionado J. Muniz Jr. viajou com mais de 200 integrantes da Escola de Samba X-9 para se apresentar no Rio. Detalhe: quem arcou com os custos da viagem e alimentação foi ninguém menos que Natal da Portela, recebendo os sambistas da baixada santista em sua residência.

Cartola, Tia Zica e J. Muniz Jr. (1964) | Acervo J. Muniz Jr.

A amizade com os bambas que venerava crescia cada vez mais e, em suas idas ao Rio no início dos anos 60, hospedava-se com a família na casa de Mano Décio da Viola, no Morro da Serrinha. Quando Cartola se casou com Dona Zica em 1964, foi passar a lua de mel em Santos na casa de Seu Muniz, que foi para a casa da sogra com a família para dar privacidade ao casal mangueirense.

Já no princípio de sua atuação como redator de jornal, pela carência de fontes bibliográficas de onde pudesse extrair informações históricas do Samba, assinava colunas e seções que cobriam em tempo real o dia a dia das Escolas, como “O Assunto é Samba” (O Diário, 1965-66) e “Por Dentro da Escola” (Cidade de Santos, 1967). Porém, na imprensa dos anos 1960 despontavam pesquisadores que fariam a diferença nesse meio, como José Ramos Tinhorão e Sérgio Cabral, além do reaparecimento do veterano Jota Efegê.

Assim, pertencendo a esta notável geração que brilhantemente trabalhou na documentação do Samba, Muniz deixou de cobrir apenas o dia a dia das Escolas e passou a retratar a biografia de sambistas dos primórdios.

Crônica de J. Muniz Jr. sobre Clementina de Jesus | Jornal Cidade de Santos (1969)

Isso se deu no jornal Cidade de Santos, assinando colunas como: “Histórias do Samba e sua Gente” (1969-70); “Samba” (1970); “Ensaio Geral” (1970); “A Pessoa” (1970) e “Só Samba” (1972-1979). Ao ter contato com os sambistas no próprio morro onde viviam, J. Muniz Jr. de bloco de notas e caneta em mãos levantava dados biográficos e informações privilegiadas, que certamente não seriam documentadas e se perderiam não fosse o seu empenho.

Fora todas as atividades que já desempenhava nesse meio, comprovando sua versatilidade compôs os Sambas-Enredo da X-9 em 5 anos consecutivos: 66, 67, 68, 69 e 70. Paralelamente, se manteve firme na função de pesquisador e autor de enredos para a X-9, numa série inicial de 19 carnavais consecutivos (1956-1974). No decorrer das décadas, Muniz chegou à impressionante marca de mais de 40 enredos com a sua assinatura para Escolas de Samba de Santos, São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades.

Desde 1955 Muniz é conceituado autor de enredos de Escolas de Samba | Jornal Cidade de Santos (1972)

Essa dupla atividade literária, isto é, a atuação na elaboração de enredos históricos e de colunas jornalísticas de Samba permitiu que naturalmente J. Muniz Jr. produzisse material para a publicação de 2 livros. O primeiro deles, “Do Batuque à Escola de Samba (Subsídios Para a História do Samba)”, foi lançado em 1976 e contou com elementos do enredo que Muniz escreveu para o carnaval de 1973 para a X-9: “Antologia do Samba (Do Batuque à Escola de Samba)”. Já “Sambistas Imortais – Dados Biográficos de 50 Figuras do Mundo do Samba – Volume I (1850 – 1914)”, lançado em 1978, foi inspirado parcialmente nas colunas biográficas publicadas por Muniz entre fins dos anos 60 até ali. 

J. Muniz Jr. é autor de livros clássicos da literatura do Samba | Acervo J. Muniz Jr.

E como o rigor histórico, escrita elegante e envolvente e escolhas temáticas originais sempre foram suas marcas, essas obras de edição única são essenciais para quem quer se aprofundar no assunto e hoje são verdadeiros clássicos da literatura do Samba.
Nesse mesmo período, J. Muniz Jr. publicou pioneiramente obras indispensáveis para a memória do Samba e da cultura de Santos: “Panorama do Samba Santista” (1976) e “X-9: Escola Pioneira” (1978). Esses trabalhos tiveram continuidade nos livros “O Samba Santista em Desfile” (1999); “O Negro na História de Santos” (2008); “Memórias do Carnaval Santista” (2013) e “Nos Tempos da Batucada - As Origens do Samba Santista” (2013). É preciso frisar que a devoção de Muniz pelo Samba é tamanha que a maior parte de seus livros foi custeada por ele mesmo.

Muniz dedicou boa parte de sua vida a documentação do Samba de Santos | Acervo J. Muniz Jr.

Aliás, J. Muniz Jr. continua produzindo em grande estilo e o seu próximo livro, escrito em coautoria com o músico e pesquisador Paulinho Bicolor, já é um clássico antes mesmo de seu lançamento, pela simples ousadia de sua proposta: reunir perfis biográficos de aproximadamente 40 cuiqueiros, dos pioneiros até os nascidos em 1950.

Muniz sempre foi um visionário à frente de seus pares e com o tempo foi se tornando o primeiro intelectual orgânico da história do Samba. Muniz é um intelectual nascido e criado no seio da simplicidade das Escolas de Samba que não apenas foi precursor ao expressar seu lugar de fala no universo das letras, como também se tornou o porta-voz dos sambistas e grande defensor dos valores, simbolismo e fundamentos do Samba.

Um diferencial de J. Muniz Jr. quando comparado a outros pesquisadores do métier é que ele não precisava submeter as suas fontes ao formato tradicional de entrevista e a toda formalidade que isso envolve. Muniz naturalmente obtia as informações que compõem seus livros e crônicas participando da informalidade dos sambistas, na intimidade do próprio lugar onde eles residiam. Embora não seja intelectual de gabinete, J. Muniz Jr. é leitor voraz do que se publica sobre o Samba, seja nos livros ou na imprensa. Por tudo isso, J. Muniz Jr. é a mais equilibrada síntese do pesquisador de campo e o pesquisador de bibliotecas e de arquivos, não sendo exagero considerá-lo o intelectual mais completo que o Samba já teve.

Dona Marli e Seu Muniz: décadas de comunhão em prol do Samba | Acervo J. Muniz Jr.

Jadir Muniz de Souza, autor deste livro e filho de J. Muniz Jr., sempre vivenciou o Samba em sua casa. Além do pai, sua mãe, Dona Marli, saiu durante cerca de 35 anos na X-9 como ritmista e baiana, trabalhando exaustivamente também no barracão, confeccionando fantasias para desfiles de carnaval. Quando criança, Jadir acompanhava os pais nas andanças pelo Rio de Janeiro. Perambular pelas vielas do Morro da Serrinha na companhia de Buzina e Zé Paulo, filhos de Mano Décio, era algo comum para o jovem Jadir.

Na presente obra, J. Muniz Jr. comprova a sua condição de mestre, pois tem em Jadir Muniz de Souza, sangue do seu sangue, o continuador de suas atividades. Durante toda vida de Jadir, Muniz o preparou para ser o seu sucessor. Assim como seu pai, Jadir foi Mestre-Sala da X-9, recebendo a distinta insígnia de “O Príncipe”. Com este livro, o 3º de sua promissora carreira literária, Jadir comprova estar prosseguindo a obra de J. Muniz Jr., retratando sambistas autênticos do universo das Escolas de Samba. Por isso, louvar a nobre iniciativa de Jadir Muniz de Souza na publicação desta biografia é reconhecer a dedicação de uma família que há décadas vem batalhando pelo Samba com absoluta devoção.

Família Real do Samba Santista: Jadir Muniz de Souza e J. Muniz Jr. | Acervo Jadir Muniz de Souza

Gostaria de tecer algumas palavras sobre minha relação com Seu Muniz. Meu caminho se cruzou com o de J. Muniz Jr. pela primeira vez em 2015 pelas páginas do monumental “Do Batuque à Escola de Samba” e do fabuloso “Sambistas Imortais”. Após o encanto inicial que estas impactantes obras despertaram em mim, procurei conhecer pessoalmente o autor daquelas iluminadas linhas.

Minha intenção no primeiro contato com Seu Muniz era saber se ele conhecia a melodia do Samba-enredo “Grito do Ipiranga”, de Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira, feito no Carnaval de 1969 para a Escola Império do Samba, de Santos. Numa tarde de inverno de 2016, desci a serra e fui conhecer o grande pesquisador J. Muniz Jr., quando tivemos um encontro inesquecível. Ainda em 2016, Seu Muniz me convidou para uma celebração das Velhas Guardas de Santos no Salão de Mármore da Vila Belmiro. Lá, me apresentou a Pachequinho, passista antigo da Império do Samba, que me ensinou a tão sonhada melodia do Samba de Silas de Oliveira e Mano Décio.

Mano Décio foi grande amigo de J. Muniz Jr. | Acervo J. Muniz Jr.

Com esse aprendizado, o Glória ao Samba, coletivo que desde 2007 se dedica ao estudo e difusão do Samba dos primórdios do qual faço parte, pôde executar esta obra na homenagem ao centenário de Silas de Oliveira realizada no Dia do Samba naquele mesmo ano, em São Paulo.

Em 2017, junto com a rapaziada do Glória ao Samba, tive a felicidade de promover um episódio marcante em nossas trajetórias: o reencontro de J. Muniz Jr. com o grande historiador da música popular brasileira José Ramos Tinhorão, que aconteceu na roda dos 10 anos do Glória, no Centro de São Paulo. Este feliz reencontro gerou frutos. Em 2018, organizei o livro “Primeiras Lições de Samba” (Instituto Glória ao Samba), de Tinhorão, e a ilustração da capa foi desenhada justamente pelas mãos de J. Muniz Jr.

José Ramos Tinhorão e J. Muniz Jr. se reencontram na roda dos 10 anos do Glória ao Samba. Ao fundo Jadir Muniz (2017) | Foto: Osmar Moura

Aquela primeira e despretensiosa tarde de 2016 tornou-se noite, que se transformou em memoráveis dias de convívio, mas, acima de tudo, se converteu numa grande amizade. Seu Muniz alimenta um amor pelo Samba que impressiona, narra fatos que viveu há 50, 60 anos como se estivessem acontecendo naquele mesmo momento, tamanha a riqueza de detalhes e paixão expressas em suas palavras e gestos. Não sei contar as vezes que meus olhos marejaram e minha espinha sentiu repentinos arrepios ao estar na presença de Seu Muniz, ouvindo-o contar suas emocionantes vivências no mundo do Samba.

Prestes a completar 90 anos, é chegada a hora e a vez de J. Muniz Jr., momento no qual sua obra merece ser relida, revalorizada e redimensionada. Que a sua grandiosa contribuição ao Samba possa ser devidamente reconhecida, pois J. Muniz Jr. nunca procurou fama nem dinheiro. Muniz cumpriu o seu destino, tornando-se o historiador que com mais reverência e paixão retratou os sambistas de morro das Escolas de Samba, empreendendo verdadeira cruzada na luta pela dignificação do Samba ao longo de sua vida. Evoé, J. Muniz Jr.! Receba a gratidão de todos os sambistas e pesquisadores do passado, presente e futuro. Sua contribuição mágica e vigorosa na defesa do Samba vive em todos nós.

Bambas visitam Muniz em Santos. Na foto: J. Muniz, Tia Zica, Carlos Cachaça, Cartola, Cabo Roque da X-9 e Seu Sebastião (pai de Cartola) | Acervo J. Muniz Jr.

O lançamento do livro ocorrerá no dia 17/01/2024
A obra já pode ser adquirida a preço popular diretamente com o seu autor.
Basta solicitar pelo e-mail: jmunizsol@uol.com.br

LANÇAMENTO 
LIVRO: “A Saga do Marechal do Samba, J. Muniz Jr.”
DATA: 17 de janeiro de 2024 (4ª feira)
LOCAL: Teatro Guarany (situado na Praça dos Andradas, 100 - Centro de Santos, SP)
HORÁRIO: 19H30

SERVIÇO
ONDE COMPRAR: com o próprio autor pelo e-mail jmunizsol@uol.com.br
VALOR: R$ 40,00 + frete
AUTOR: Jadir Muniz de Souza
ANO: 2024
EDITORA: Comunicar
PÁGINAS: 184
LOCAL DE EDIÇÃO: Santos (SP)
PRODUTOR EDITORIAL: Paulo Pechmann

[Agradeço o convite de Jadir Muniz de Souza para assinar o prefácio da obra “A Saga do Marechal do Samba, J. Muniz Jr.”, publicado aqui no IMMuB com leves adaptações.]

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