Música

30 anos sem Cazuza: um canto de solidão e sobrevivência

Os últimos anos do poeta mais roqueiro do Brasil

terça, 07 de julho de 2020

Compartilhar:

“A morte é um triângulo de luz, uma paz. Como se fosse um gozo, um choque de heroína.”

(Cazuza para a TV Bandeirantes, 1988)

Uma cruz luminosa 

Muitos disseram que foi um novo Cazuza que subiu ao palco do clube AeroAnta naquela noite de agosto de 1988 para a estreia do seu novo show. Ou uma nova versão daquele mesmo Cazuza - o louco, romântico e exagerado poeta do rock nacional que fez história nos anos 1980. A movimentação no palco, antes catártica e desvairada, com direito a gritos e cacos de vidro salpicados pelo chão, cederam lugar a uma postura mais serena, comportada. Ele cantava de olhos fechados, gesticulando com os braços e deixando as canções falarem por si. 

Vestia uma roupa branca, com blusa de seda e calça de linho, que realçava uma silhueta indubitavelmente mais magra. A juba rebelde e cacheada que lhe caracterizava foi substituída por um cabelo alisado, adornado com uma bandana sobre a testa. 

As canções, a maioria tirada de seu mais novo trabalho, o disco “Ideologia”, estavam mais ferinas e combativas do que nunca. Em determinado momento, ele anunciou, sob os acordes de uma introdução de blues:

- Agora eu vou cantar pros miseráveis que vagam pelo mundo derrotados. Pra essas sementes mal plantadas que já nascem com cara de abortadas! 

Era o “Blues da piedade”, um dos seus mais novos petardos contra a mediocridade dos que preferem viver à sombra de uma mentalidade tacanha, que ele combatia vorazmente. Ao fim da canção, depois de rogar aos céus um pouco de piedade a esses “caretas” e “covardes”, Cazuza esticou os braços para os lados, jogou a cabeça para trás e dois jatos de luz perpendiculares o pregaram momentaneamente a uma cruz luminosa.

A imagem, simbólica e sugestiva, foi percebida por poucos na plateia, mas é uma metáfora poderosa dos últimos anos de vida de Cazuza, criada genialmente por Ney Matogrosso, o iluminador e diretor do show. Começava ali a sua jornada de resistência, sobrevivência e solidão. 

Cazuza durante o show "Ideologia" em 1988 (Arquivo Pessoal/Reprodução).  

A nova Idade Média  

Essas pequenas, mas já perceptíveis, transformações tinham uma causa. Um ano antes, em 1987, depois de uma série de problemas de saúde, Cazuza recebeu a confirmação: havia testado positivo para o vírus do HIV, a aids.

A doença, surgida no início dos anos 1980, gerou um pânico coletivo que fez recrudescer muitos dos avanços conquistados nas décadas de 1960 e 1970 em torno de assuntos como o sexo, o uso de drogas, os costumes em geral e a sexualidade. 

A população LGBT, tida à época como o “grupo de risco” da nova doença, logo se tornou o bode expiatório preferencial de uma paranoia social perversa e persecutória. Como afirma João Silvério Trevisan no livro “Devassos no Paraíso” (Editora Objetiva, 4ª Edição, 2018),  “A aids nada criou. Ela exacerbou elementos que as convenções sociomorais não deixaram aflorar à luz do dia.” 

Assim, a homofobia brasileira, sempre latente, saiu das sombras e ganhou novamente a boca do povo - literalmente. Discursos explicitamente homofóbicos e repressivos sofreram contorcionismos retóricos mal disfarçados e foram adotados por jornalistas, líderes religiosos, políticos, sanitaristas, acadêmicos, intelectuais, médicos e psicólogos. O ódio de repente foi apontado como uma das possíveis curas do vírus. 

A descoberta da doença, portanto, inseriu Cazuza no olho desse furacão. Ele, que sempre foi um típico “porra louca”, libertário e transgressor por natureza, teve sua percepção crítica sobre o mundo e a sociedade ampliada, o que resvalou nas composições. Suas letras passaram a escancarar cada vez mais essa realidade hipócrita e mesquinha dos discursos retrógrados. A raiva e a indignação diante desse cenário potencializaram a verve poética de Cazuza, que passou a compor compulsivamente até o fim da vida. 

Cazuza em ensaio fotográfico para o encarte do álbum "Ideologia" (Viva Cazuza/Reprodução). 

O primeiro fruto dessa nova fase foi o disco “Ideologia”, lançado no início de 1988. Quase todas as músicas do álbum foram compostas no leito de um hospital em Boston, nos Estados Unidos, onde se internou para buscar o tratamento com AZT, então o único remédio conhecido que retardava os efeitos da aids e que não era vendido no Brasil. 

A realidade vivida por ele muitas vezes se espelhou nas canções. Na que dá nome ao disco, por exemplo, ele dizia: “O meu prazer/ Agora é risco de vida/ O meu sex and drugs/ Não tem nenhum rock´n´roll”. Em “Boas novas” ele relatava seu confronto com a morte, cuja ameaça passou a ser uma companheira constante: “Senhoras e senhores/ Trago boas novas/ Eu vi a cara da morte/ E ela estava viva, viva!”. Com “Brasil”, ele teceu um comentário duro sobre a realidade social do país, com versos como “O meu cartão de crédito é uma navalha” ou “Apagar sem ver toda essa droga/ Que já vem malhada antes de eu nascer”. 

O disco foi recebido pela crítica como um dos melhores trabalhos de sua carreira. Pouco tempo depois, no show de divulgação - aquele que estreou no AeroAnta dirigido por Ney Matogrosso - ele lançou “O tempo não para”, que relatava o desgosto com o “museu de grandes novidades” em que se transformara o mundo, na qual afirmava estar sobrevivendo “sem um arranhão”: “Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro/ Transformam o país inteiro num puteiro/ Pois assim se ganha mais dinheiro”.

A canção se tornou um dos grandes sucessos de sua carreira e impulsionou as vendagens do disco “O Tempo Não Para - Cazuza Ao Vivo”, lançado em fins de 1988 e gravado durante uma temporada no Canecão

Fotos: IMMuB/Reprodução. 

Resistindo em praça pública 

Foi no dia 13 de fevereiro de 1989 que Cazuza anunciou publicamente que estava com o vírus da aids. Em uma entrevista concedida ao jornalista Zeca Camargo, pela Folha de São Paulo, ele finalmente confirmou que estava com “a maldita”, como a chamava, depois de uma longa exploração da mídia sobre o assunto. 

Com isso, Cazuza se tornou a primeira personalidade brasileira a falar publicamente sobre a aids, abrindo uma porta fundamental para encorajar outras pessoas contaminadas a resistirem junto com ele. Uma atitude corajosa, logo atingida pela lógica medieval operada por boa parte da imprensa à época, como foi o caso de uma famosa edição da revista Veja. “Cazuza, uma vítima da aids agoniza em praça pública”, dizia a manchete, recorrendo à imagem dos castigos oferecidos aos “pecadores” durante a Idade Média. 

A resposta do cantor a esses ataques foram sempre sua música e sua decisão de resistir - à doença e aos preconceitos nascidos com ela. Pouco depois dessa manchete, ele compareceu, já bastante debilitado, ao II Prêmio Sharp, quando ganhou dois troféus: Melhor Disco por “Ideologia” e Melhor Música por “Brasil”. Enquanto ele recebia os prêmios, a atriz Marília Pêra leu um manifesto assinado pela classe artística contra a capa da Veja

Ainda em 1989, Cazuza gravou o derradeiro disco produzido por ele em vida. Gravado em uma cadeira de rodas, entre uma internação e outra, o álbum duplo “Burguesia” é ainda mais contundente que “Ideologia”. A faixa-título é um grito contra o modelo de vida que ele tanto desprezava: “A burguesia fede/ A burguesia quer ficar rica/ Enquanto houver burguesia/ Não vai haver poesia”. Em inédita parceria com Angela Ro Ro, uma de suas maiores referências musicais, ele dizia se sentir como uma “Cobaia de Deus”. Resultado das muitas internações e da falta de informação que rondava a cura e a causa de sua doença: “Me tire dessa jaula irmão, não sou macaco/ Desse hospital maquiavélico/ Meu pai e minha mãe, estou com medo/ Porque eles vão deixar a sorte me levar”. 

Capa do álbum "Burguesia" (Reprodução). 

Em rara incursão pelo repertório alheio, ele atualizou uma antiga composição de Antônio Maria e Fernando Lobo, “Preconceito”, que soou coerente com aquele período de exorbitante homofobia: “Se as nossas vidas juntas/ Vão ter sempre um triste fim/ Se existe um preconceito muito forte/ Separando você de mim”. 

O amor homoafetivo, ainda mais demonizado no período da aids, foi abordado também na sensual “Esse cara”, de Caetano Veloso (“Ah, que esse cara tem me consumido/ A mim e a tudo que eu quis…”), e na autoral “Como já dizia Djavan”, parceria com Frejat: “As estrelas ainda vão nos mostrar/ Que o amor não é inviável/ Num mundo inacreditável/ Dois homens apaixonados”. 

A inevitável temática da despedida apareceu na releitura de um filosófico blues de Rita Lee e Paulo Coelho lançado em 1975, “Cartão postal”: “O adeus traz a esperança escondida/ Pra quê sofrer com despedida?”. 

Um triângulo de luz 

Cazuza partiu no dia 7 de julho de 1990 em decorrência de um choque séptico causado pela aids. 

Manteve até o fim uma atitude positiva e irreverente e seguiu trabalhando sem parar (o que originou, em 1991, o álbum póstumo “Por aí…”). A cruz que carregou nos últimos anos de vida não era o fardo de um mártir ou de uma vítima, mas a cruz luminosa de um artista que soube usar a rebeldia e a poesia contra a morte. E ele a carregou com leveza e bravura, cantando e compondo para afogar a solidão, resistir e sobreviver. 

Na música “Quando eu estiver cantando”, que fecha o álbum “Burguesia”, ele confessou: Porque meu canto é minha solidão/ É a minha salvação/ O meu canto redime o meu lado mau/ Porque o meu canto é o que me mantém vivo

Por isso, enquanto escutarmos Cazuza, ele cantará. E enquanto ele cantar, sobreviverá também. E nós vamos resistir e sobreviver junto com ele. Porque, afinal, o tempo não para, mas ensina muita coisa. 

Texto por: Tito Guedes


Comentários

Divulgue seu lançamento