Historicizando as canções

O Homem de Preto: 90 anos de Waldick Soriano

quarta, 24 de maio de 2023

Compartilhar:

Eurípedes Waldick Soriano nasceu em Caetité, na Bahia, no dia 13 de maio de 1933. Foi cantor e compositor de vários sucessos românticos que hoje fazem parte da memória afetiva de diversos brasileiros. Embalou os momentos mais sentimentais de diversas pessoas com músicas como “Vestida de Branco”“A Carta”“Tortura de Amor”“Eu não sou cachorro, não”, “Paixão de um Homem” e muitas outras.

Waldick Soriano vem de família pobre, ainda criança precisou ir trabalhar, o que é uma dura realidade da sociedade brasileira. Muito provavelmente, hoje, Waldick seria “cancelado” pelos twitteiros. Em 1973, deu uma entrevista para o jornal Zero Hora, Porto Alegre, em que defendia a existência dos esquadrões da morte, e este mesmo Waldick declarou “Cristo pra mim foi um arruaceiro. Eu li a bíblia de cabo a rabo e não vi nada do que se fala. Tudo uma cascata. Eu não tô nessa de Cristo. Não entendo o que se fala dele, acho que era um enganador.”

Isso causou um grande alvoroço em torno do cantor, não apenas por parte da mídia, pois o tema chegou até a Assembléia Legislativa gaúcha, tanto os deputados do Arena (partido do governo) e do MDB (oposição) ficaram contra o cantor. E foi pedido até mesmo que Waldick fosse enquadrado na Lei de Segurança Nacional e queriam que ele fosse censurado por suas falas, como aponta Paulo Cesar de Araújo em seu livro “Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”.

Todos os ataques feitos a Waldick enfatizavam sua suposta falta de intelecto e que ele era uma pessoa que andava em lugares indecentes e com más companhias.

No ano seguinte, 1974, Waldick teria uma composição censurada, “Tortura de amor”, um dos seus maiores sucessos. Waldick a compôs no final da década de 1950, quando ainda era garimpeiro.

“Hoje que a noite está calma
E que minh'alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora”

A música teve sua radiofusão proibida em todo o território nacional e Waldick não podia vender seu disco. O leitor já deve ter percebido o que causou a censura da canção, a palavra “tortura”. Hoje, o que acontecia nos porões da ditadura não é nenhum segredo, apesar de ter quem queira negar ou passar pano para os milicos, durante a ditadura militar essa prática era negada pelo governo e os militares não queriam essa palavra tocando todo dia nas rádios.

Várias pessoas foram torturadas, inclusive a ex-presidente do país Dilma Rousseff, e não só adultos, até mesmo crianças sofreram na mão dos militares, como aponta o livro “Infância Roubada - Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil”, publicado pela Comissão da Verdade de São Paulo.

“[...] E o poeta, o poeta de verdade, é um eterno apaixonado. Ele mesmo não sabe por que nem por quem, mas está sempre apaixonado.”

Trecho de entrevista de Waldick para Paulo Cesar de Araújo

Tortura de amor foi gravada originalmente em 1962 mas não obteve sucesso. Foi com a regravação de 1974 que ela teve repercussão mas foi censurada. Paulo Cesar de Araújo no seu livro já citado afirma que essa é a composição mais regravada de Waldick, incluindo versões de Cauby Peixoto, Maria Creuza, Agnaldo Timóteo, Fagner, Nelson Gonçalves e outros.

Outro grande sucesso de Waldick Soriano foi “Eu não sou cachorro, não”, composta em 1972, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, o cantor veio do Rio de Janeiro, contudo, o voo teve atraso, quem o estava esperando em Natal era o empresário Winston de Oliveira que quando encontrou o cantor disse “Porra, Waldick, estou até agora lhe esperando. Eu não sou cachorro, não, rapaz!”. Como muitos devem saber, a frase é um dito popular.

A canção foi lançada em outubro daquele ano, alcançando o primeiro lugar nas paradas e nas listas de vendas. A música estava na boca do povo e muito se falou que o sucesso era porque o povo brasileiro era ingênuo e aceitava qualquer coisa como boa.

Paulo Cesar de Araújo em seu livro supracitado levanta um ponto acerca da canção, “Eu não sou cachorro, não”, não é uma música sobre desilusão amorosa, obviamente, mas também possui uma carga política porque o famoso refrão também poderia ser lido como um grito contra a opressão que a classe trabalhadora sofreu e continua sofrendo, lembrando que é do segmento mais pobre que vem grande parte do público de Waldick Soriano.

Waldick, como outros grandes artistas de sua época, foram injustamente taxados de cafonas e posteriormente de bregas, rótulo que o mesmo rechaçava. No documentário “Waldick, sempre no meu coração”, dirigido e produzido por Patrícia Pillar, o cantor afirma que não é brega e sim um cantor romântico.

Aproveitando o tema, é importante falar do visual de Waldick, uma de suas marcas, sempre todo de preto e chapéu de couro, o próprio já afirmou que isso era por influência do personagem Durango Kid, um cowboy herói, protagonista de um seriado e filmes, e Waldick sempre foi fã de cinema.


Durango Kid. Fonte: The Movie Database

Waldick Soriano. Fonte: Rádio Senado


O repertório de Waldick é essencialmente sobre o amor e tudo que ele causa nas pessoas, seja a alegria de achar alguém ou a angústia da rejeição e as de rejeição são as que mais chamam a atenção deste que vos escreve. Porque em muitas das músicas de Waldick em que o amor não é correspondido ou termina bem é porque o eu lírico é pobre e sua situação é o impeditivo para a concretização do amor com a amada. Um exemplo é a canção “O moço pobre”, de 1968:

“Um moço pobre como eu não deve amar
E nem tão pouco alimentar sonhos de amor
O mundo é só de quem tem muito pra gastar
Um moço pobre como eu não tem valor”
Pobre de amor, de 1972 é outro bom exemplar dessa desilusão amorosa:
“Um homem pobre como eu não deve amar
Eu nunca tive tive o direito a ser feliz
Vivo a procuro dessa tal felicidade
Perdi meu tempo por amar quem não me quis”

Como pode ser observado nos dois trechos destacados, as canções não deixam dúvida que a pessoa é pobre e foi sua pobreza que não a deixou ter a amada. Isso poderia explicar em parte seu sucesso, será que apenas nas canções de Waldick que a desigualdade social impede o relacionamento entre duas pessoas de condições sociais diferentes ou isso teria um lastro na realidade? Além disso, essas canções são em primeira pessoa, o que ajuda a realçar a identificação do público, “Eu não sou cachorro, não!”. É muito fácil simplesmente falar que Waldick e outros artistas fizeram sucesso pela falta de intelecto do público ou por imposição da indústria cultural. Mas como esse público enxerga e lida com esse repertório? Essas letras dialogam com a realidade dos ouvintes?

Ao se apontar que algo é cafona fica implícito que existe algo chique, e quem está ditando esses valores? Esses embates perpassam as questões de classe, os artistas chamados de cafonas vieram e fizeram sucesso nas camadas mais pobres do país, enquanto que os artistas que são consumidos e amados pela classe média e alta são tratados como a música popular brasileira, excluindo o que de fato a grande massa brasileira gosta e consome.

Waldick Soriano partiu no dia 4 de setembro de 2008, depois de um período lutando contra um câncer. Nesse mesmo ano, foi lançado o documentário produzido pela Patrícia Pillar, além de um DVD de um show gravado no Cineteatro São Luís em Fortaleza.

A família afirma que Waldick morreu sem dinheiro, deixando apenas os direitos das canções. Waldick deixou mais de 40 discos e foi um grande ídolo para diversos brasileiros. Agnaldo Timóteo deixou registrado que Waldick era um mestre. Waldick tinha suas contradições e isso é um reflexo das contradições do país e é preciso salientar sua origem, não que justifique posicionamentos, pelo contrário, é importante ter a consciência que o povo não é uma massa homogênea e bonzinho por natureza, isso é romantizar a realidade. As falas problemáticas não podem ser esquecidas e nem anular sua importância como fonte histórica e elemento da memória afetiva de vários brasileiros. Vários brasileiros vão continuar cantando e chorando suas músicas.

Comentários

Divulgue seu lançamento