Prosa & Samba

80 tons de Leci Brandão

Terça, 17 de setembro de 2024

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“Quero ver você sambar,

Quero ver você sambar

Como sambou papai

Quero ver você dançar

Como dançou mamãe”

Trecho do samba “Papai vadiou” de seu primeiro álbum intitulado Leci Brandão (1974)


Rio de Janeiro, 12 de Setembro de 1944

O Brasil completava 123 anos de sua Independência e 56 anos de formação como República. Era um período comandado por Getúlio Vargas e pairava no ar o aroma de uma  2ª Guerra Mundial.

Ainda entre os fogos remanescentes dos festejos de aniversário da nação, nascia, nesta mesma capital, a filha de Dona Leci de Assumpção Brandão e do Sr. Antônio Francisco da Silva, que carinhosamente foi batizada como
Leci Brandão
da Silva.

Apesar de nascer no Bairro de Madureira, foi em Vila Isabel que a jovem Leci bebericou das águas sagradas do Samba, quis Oxalá que ela pudesse nascer no Bairro de Paulo da Portela e caminhar pelas notas musicais do bairro de
Inspiração que a juventude lhe trouxe ao ouvir as rodas de samba e choro que a fizeram se apaixonar pelos instrumentos de percussão. 

A música tem um fator de conexão com o mundo e a fez transpor seus sentimentos para o papel. Aos 21 anos, ela começa a escrever suas primeiras composições, como a música “Tema de amor e você”, na qual a inscreve no programa “A Grande Chance”, do apresentador Flávio Cavalcanti. A sua arrebatadora apresentação lhe garante o título e a confiança para começar a carreira. 

Em 1970, enquanto o Brasil saboreava a conquista do Mundial de 1970, no México, Leci estava começando a construir sua carreira sem abandonar a música, se formando em Direito pela Universidade Gama Filho. 
Mas o samba era seu acalanto nos dias em que ainda buscava seus caminhos pela música.

A sedução da sonoridade que ecoava do Morro da Mangueira lhe atraiu nomes como
,
,
,
,
Zagaia
, que 
se tornaram corriqueiros em sua vida. Naquele tempo, a menina que cantava em Blocos de Carnaval em Realengo ganhava destaque e, ao lado de Verinha (01), elas foram apresentadas como novas integrantes da Ala de Compositores da Mangueira.


Verinha (Vera Lúcia da Silva) foi moradora do Morro de Mangueira e também é considerada pioneira na ala dos compositores.



No ano seguinte, apresenta “Quero sim”, parceria com
Darcy da Mangueira
(1932-2008), no Encontro Nacional de Compositores de Samba. Chega à final do festival Abertura (1973), da Rede Globo, com “
Antes que eu volte a ser nada
”. A canção autoral dá nome ao LP da cantora e chama a atenção do jornalista Sérgio Cabral (1937).


Então Leci, que encanta não somente pela sua interpretação em suas canções, mas também pela maneira que compunha suas obras, ganha na época o que chamamos hoje de engajamento, defendendo a população de classe média baixa em suas canções, defendendo o protagonismo das mulheres, principalmente as de raça negra e lutando contra a intolerância, e
m um período no qual nossa sociedade ainda não dialogava sobre a força da mulher e reinava o machismo dentro dos grandes meios (algo que ainda não se modificou).

A sambista ganha notoriedade, m
as a batalha maior ainda estava por vir. Sempre com sua postura aguerrida e lutando por um cenário melhor, Leci gravou “
”, defendido pela Estação Primeira Mangueira no Carnaval de 1962. A letra, inspirada na obra do antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), faz críticas ao regime escravocrata brasileiro e trazendo alento a questão do negro na sociedade da época.

A cantora se torna candeia de uma camada da população silenciada pela ausência de espaços. 
O povo a enxergava como sua própria voz quando lhe faltava ar para prosseguir.

“Ser mulher é muito mais que batom ou bom perfume”
Trecho da canção “Ser Mulher”, composta pela própria Leci Brandão


As incríveis capas de Elifas Andreato traduzem a personalidade da artista, evidenciando a sua ligação com as raízes africanas evidenciadas em um momento onde a religiosidade negra era perseguida e ainda é, Leci transpôs os caminhos suaves que a sociedade estava acostumada.
Sua atemporalidade a conduziu a ser a porta voz de uma parcela da sociedade, algo que se tornou diretriz em sua carreira.

"Deixa ele beber, deixa ele fumar, deixa ele voar. 
É melhor do que ele sacar uma arma pra nos matar."
Trecho da canção Deixa, Deixa

Nos anos 1990, ela se torna cada vez mais importante no cenário de propagação do samba e pagode, se tornando figura carimbada nos eventos das grandes rádios do eixo RJ-SP. Ali, como propagadora da boa música, o nome Leci Brandão se consolidou e abriu caminho para levar o samba para cada canto do país.

Por sempre pensar à frente do seu tempo, Leci sempre buscou caminhos para que cada vez mais as vozes das mulheres fossem ouvidas, e através da política ela encontra caminhos: ela se elege em São Paulo com recorde de votos. 
Leci se sobrepõe ao tempo e ganha homenagens por onde passa, seja através do Carnaval, das Escolas de Samba e de seu povo que a ama. 

“Nos serviços de alto falantes…
Ainda ecoa com as graças dos orixás, a voz e o talento de Leci…"

Leci por mim

Eu poderia navegar pelos mesmos mares que muitos fizeram durante estes dias para homenageá-la. Sua trajetória e carreira falam por si, mas decidi entre bemóis e sustenidos que este não seria o caminho para quem tem o samba como seu signo. 
Se os orixás que regem seus caminhos ajudam nas dores e semeaduras, o samba é o seu cântico de paz, o enorme livro aberto no qual você rascunhou e transcreveu seu coração.

No Carnaval de 2018, nos encontramos em um solo sagrado onde os rastros de saudades ficam para trás, ali naquele templo do samba paulistano lhe encontrei no limiar de vosso cansaço, lhe saudei e prometi que só iria registrar este momento em uma outra oportunidade. 
Indelicadeza não preza em meu manual! 

Cresce em um berço musical, filho de uma costureira que utilizava dos poderes do samba para enganar suas mágoas. 
As desventuras de sua vida ficavam longe ao ouvir seu cantar, igual a minha, outras mulheres se identificavam ao seu cântico. 
Trduzir-lhe será um erro meu e de quem ousar lhe definir, as palavras não terão embasamento e seremos rasos ao tentar transcrever vossa importância para este movimento popular.

Vosso nome que é oriundo do latim e tem como significado ser Amada ou forma contracta de Luz, para nossas vidas é sim a luz, e por quê? 
Porque somente uma mulher batalhadora, guerreira e vencedora de espiritualidade valorosa poderia traduzir com tanto carinho o sentimento de nosso povo!

Logo você, que tanto falou e cantou sobre o amor, merece de todos nós muito mais do que aplausos, e sim o nosso agradecimento e centenas de flores em vida. 
Ah, Dona Leci, se o mundo pudesse trazer de volta grandes sambistas imortais no qual conviveu e aprendeu, ai se esta minha São Paulo dos tempos da garoa pudesse lhe presentear e trazer de volta o apreço de quem aqui se foi… antes de dizer adeus…

Como o tempo não volta e nestes 80 tons de Leci devemos sim todos juntos lhe saudar e lhe aplaudir eu deixarei aqui um momento no qual sua memória jamais deixará se perder. 
Ao lado de um dos grandes baobás de cultura, Seu Nenê de Vila Matilde, vila esta no qual você se apaixonou.

Dona Leci, o negro continua sendo amor, o negro sim é muito capaz e você provou que o negro é lindo, e sempre está evoluindo, sempre mais!

E por isso nosso carnaval lhe saudou batendo no peito e dizendo quem é…

Nesta passarela da vida, somos todos filhos de Dona Leci… mas…

“Quando você for convidado pra subir no adro
Da Fundação Casa de Jorge Amado”
Trecho da canção Haiti, de Caetano Veloso


Vamos todos ver os traços das mulheres guerreiras como a Sra. Leci Brandão que tanto nos ensinam através de seu cantar, a crescer e ouvir, e nós iremos achar o tom…

“Acorda meu amor é hora de levantar”
Trecho da canção “Café Com Pão”, composta por Leci Brandão


Viva os 80 anos de Leci Brandão. 
Axé!

Nota:

(01) informação contida no site do Raymundo de Castro, grande observador da Estação Primeira de mangueira.

 https://raymundodecastro.blogspot.com

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