Colunista Convidado

A bossa russa de Oleg Tumanov com letras e vozes brasileiras

quinta, 02 de abril de 2020

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 Mais uma façanha do boomerangue da bossa nova. Ele já ricocheteou no jazz americano, de Ella Fitzgerald a Miles Davis; imantou do ícone do rock Elvis Presley (“Almost in Love”, de Luiz Bonfá) e o cançonetista Frank Sinatra (num disco inteiro com Tom Jobim) à turbulenta cantora careca irlandesa Sinead O’Connor, o proto-punk Iggy Pop (ambos gravaram, cada um a seu modo, “Insensatez”) e a desabrida soulful inglesa Amy Winehouse (“The girl from Ipanema”). Isso sem falar na lendária volúpia dos erres da diva francesa Brigitte Bardot em “Marrria Ninguém”, (de Carlos Lyra) ao Japão, convertido de Lisa Ono, em parcerias com João Donato. A bossa agora volta da Rússia, sob a forma de composições do devoto local Oleg Tomanov, letradas pelo carioca Mauro Aguiar (ilustre parceiro de Guinga), no disco On the way from Brazil, com participações vocais dos nativos Joyce Moreno, Leila Pinheiro, Jane Duboc, Luciana Alves, Celso Fonseca e Moska.

Como diz o jornalista Hugo Sukman no texto de apresentação, Tumanov “não caiu de paraquedas na Guanabara”. Admirador da música latina, traz no currículo o disco “Last Love tango”, a propósito do gênero portenho. E o auto-explicativo “Rio-Havana”, com os brasileiros João Donato, Leny Andrade, Emilio Santiago e Wanda Sá mais os cubanos Chucho Valdez e Armando Cantero. Deste repertório, aliás, é “Latin romance”, em registro instrumental de Valdez, que Joyce singrou no novo disco , já letrada por Mauro Aguiar, sob o título “Uma nova canção”. Ressalte-se a curiosa argamassa da parceria Tumanov-Aguiar. “Compositor e letrista fizeram todas essas canções sem se conhecer, como que telepaticamente”, diagnostica Sukman. O russo escreveu algumas delas em inglês, outras em sua própria língua, sempre imantado pelo oceano sonoro em que resolveu navegar: “Um império musical, um dos maiores do mundo”, como definiu a MPB.

Mas...Outros tempos, outros temas. Aguiar soube transpor para nossa amarga distopia atual, o ainda idílico Brasil da bossa dos anos 50/60 do século passado, que também já destilava inconformismo em algumas de suas alas. “Entendi que deveria permanecer na bossa nova, mas deslocada daquele país esperançoso dos anos JK”, sentencia ele. Como na faixa título, traduzida “Viagem do Brasil”, no timbre gutural cortante de Leila Pinheiro, que cita o clássico inaugural do movimento, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, gravado por João Gilberto, em 1958: “Agora eu digo/ Chega de saudade/ senão perde a validade/ o que há de verdade no Brasil?” Aguda questão, aprofundada na letárgica “Elegia”, na emissão cristalina e apurada de Luciana Alves: “Luz/ findou-se a luz/ fiquei sem ar (...) cais/ cai sobre nós/ a paz sem voz”.

Também sofreu abalo o doce balanço da “Garota de Ipanema” na revisão suingada (com citação do mote de “Berimbau”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes) de Celso Fonseca, um pós-bossanovista de estirpe. “Mas olha lá!/ ela só veio ver o mar/ olha o jeito dela andar/ ela sabe onde bem pisar”. Empoderada ainda mais radical, “Elenova”, outra com a certeira Luciana Alves, uma valsa em 6/8 com algum sotaque caribenho, linka signos russos e revolucionários: “ela é brusca/ diz que o país moscou/ mas insiste e maloca/ um molotov no meu Gol/ e malgrado / o tanto que se arriscou/ eu gosto dela até na Sibéria/ por ela eu vou”.  E ainda: “Presta atenção/ vai durar esta noite/ pega a canção/ o martelo e a foice/ pega o que der e vem/ e ninguém/ larga a mão de ninguém”. Ainda não eram tempos de coronavirus.

Também há espaço para o lirismo algo solar de “Outono no Rio”, por uma cariciosa Jane Duboc, um tanto mais sombria em “Não disse adeus” (num clima de “Pra dizer adeus”, de Edu Lobo e Torquato Neto). E também a citação do hino de “Orfeu Negro”, “Manhã de carnaval” (Luiz Bonfá/ Antonio Maria), nos remansos de “Uma nova canção” pela filha da bossa Joyce Moreno: “Mas vê/ que a canção revisita a bonita manhã/ que só por amor, meu amor procurava”.

O elenco instrumental de ases, também escolhidos com critério ecumênico, arregimenta o russo Alexey Podymkin (piano), os franceses Baptiste Herbin, Idriss Boudrioua (saxes) e Emile Saubole (bateria), os dois últimos radicados no Rio, onde foi feita a gravação. Entram cordas e sopros locais, mais o violão de Bernardo Ramos, piano de Eduardo Farias, baixo de Jefferson Lescowich, percussão de Dada Costa, flugelhorn de Bruno Santos, além de arranjos e direção musical de Rafael Rocha. Boa parte deles cintila nas duas faixas instrumentais do CD, na linha samba jazz, “Rio” e a releitura de “Ela só veio ver o mar”. O álbum “On the way from Brazil” retrofita o país da bossa, mas deixa claro seu recado logo na faixa de abertura, “Escapatória”, vocalizada por Joyce: “Vamos fugir, vambora agora/ vamos correr o mundo afora/ por aí, sem direção/ vamos sumir daqui”. 

Tárik de Souza


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