Conversa de MPB

A Flor de Cassiano viverá

sexta, 16 de julho de 2021

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No dia 07 de maio de 2021 o Brasil foi pego de surpresa com a notícia triste do falecimento do cantor e compositor Cassiano (Genival Cassiano dos Santos) aos 77 anos. Acompanho a obra e carreira de Cassiano há muito tempo e estranhava a falta de notícias sobre ele e, há algum tempo, até me questionava sobre o paradeiro dele. Há muito me perguntava, onde estaria e o que estaria fazendo Cassiano?

Cassiano, apesar de carreira solo consistente com a gravação de quatro discos solo "Imagem e Som – A Mil por Hora" (1971), "Apresentamos Nosso Cassiano" (1973), "Cassiano – Cuban Soul 18 Kilates" (1976) e "Cedo ou Tarde" (1991), é comumente referido a partir de grandes sucessos gravados por outros cantores como o grande Tim Maia, que eternizou grandes sucessos como "Coleção" e "A Lua e Eu" (Cassiano e Paulo Zdan) ou "Eu Amo Você" e "Primavera (Vai Chuva)" (Cassiano e Paulo Rochael). As duas últimas, por exemplo, faziam parte do disco de estreia de Tim Maia em 1970 e estão entre os grandes sucessos do álbum. 

Ainda antes da composição e lançamento de grandes sucessos e do seu primeiro álbum solo, Cassiano já colocava em prática e experimentava sua sonoridade, passando por diferentes vertentes com as suas participações no grupo Bossa Trio e posteriormente na sua experiência com o grupo Os Diagonais. Neles, Cassiano já se expressava como um compositor que não tinha medo de arriscar. Lembremos que, enquanto neste período ele já flertava com a possibilidade de circular por diferentes estilos como a Bossa Nova, o Rock, o Samba, o Funk e o Jazz, outros grupos e movimentos também lidavam com a pegada das descobertas, inventividades e misturas como o Tropicalismo e a efusão de sucessos da Jovem Guarda, a partir dos mais diversos representantes. No disco "Os Diagonais" (1969) destaco e indico as versões de "A Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso), "Terezinha de Jesus/Cala a Boca Etelvina" duas músicas já muito conhecidas interpretadas na pegada balada Jovem Guarda, que lembra muito o “estilo pilantragem” liderado por Wilson Simonal.

Contudo, as experimentações as quais me refiro tornaram-se ainda mais evidentes nos álbuns solo que foram lançados por toda a década de 70 e que o tornaram um verdadeiro ícone da música brasileira com a clara influência da soul music norte americana com o seu toque muito particular. Em todos os álbuns solo de Cassiano, é nítido que ele explora de forma magistral a sua voz que se caracteriza de forma muito particular, influenciada pela música negra norte americana, o que aparece em todas as músicas, repletas de melismas e falsetes exuberantes tão próprios de Cassiano. Além disso, encontramos frequentemente lindos acompanhamentos de coral de vozes em registros altos e arranjos vocais que dão uma ambientação magistral para diversas músicas; as orquestrações, principalmente em arranjos de cordas são sempre bastante rebuscadas e que ampliavam a complexidade e sofisticação do swing do cantor. Para além disso, as fusões propostas por Cassiano com o rock mais pesado, rock progressivo e a psicodelia trouxeram para seus discos um toque especial e muito particular. Talvez, por conta disso, é que Cassiano tenha sido considerado por muitos como um cantor e compositor “difícil” para o ouvido do público que buscava músicas de fácil compreensão e hits de refrões simples muito frequentes naquele momento da década de 70. 

Nesse contexto, Cassiano passou a ser um artista pouco midiático, mesmo tendo seus hits inevitavelmente incluídos nas playlists dos bailes do sudeste e, posteriormente, de qualquer parte do Brasil. É incontestável que, para além dos diferentes movimentos musicais ocorridos no Brasil a partir da iniciativa, principalmente de jovens brancos da elite econômica do Brasil, Cassiano irrompe como um grande representante da cultura, da identidade e da música negra brasileira. Talvez hoje ele não seja reconhecido por isso, já que outros cantores e compositores tenham ganhado ainda mais cartaz do que ele, mas não tenho dúvida em dizer que Cassiano tenha sido o precursor de um grande legado da música negra no Brasil, juntamente com seus amigos Tim Maia e Hyldon, entre vários outros. Interessante é que os álbuns solo de Cassiano sempre passaram pelo crivo dos álbuns de pouco apelo financeiro o que dificultava frequentemente no fechamento de contrato com as mais importantes gravadoras brasileiras. Hoje, os mesmos álbuns são reverenciados como verdadeiras raridades e procurados por colecionadores.

Dentre os temas frequentes nas composições de Cassiano, vemos a questão da natureza, como a primavera, a lua, a flor, o verão e o mar. É neste contexto que destaco aqui duas das músicas de Cassiano que mais me tocam, dentre tantas outras que considero verdadeiras joias. "Melissa" ("Apresentamos Nosso Cassiano", 1973) é claramente uma homenagem de Cassiano à sua filha que, como mostra a letra da música, nascera no verão de 1971. Ali, o autor mostra como o nascimento de Melissa mudou seu mundo, provavelmente sem tanta alegria e brilho “acordo e há cor, volto a sorrir”, e apresenta como tudo passou a se apresentar naquele nosso ser que só queria brincar “Tua mãe te deu à luz, o céu brilhou e o mar. O céu brilho e o mar, o céu brilhou e o mar”. Essa imagem toda se passa numa noite de Natal e é neste ambiente que o autor indica que “Uma estrela acesa em teu olhar. Ela se mostra um grande amor, que só se dá (Yeah). Canta melissa, minha melissa (Yeah). Minha melissa, hoje é Natal”. "Melissa" tem uma pegada rock com guitarras quase nada pouco distorcidas, uma introdução linda para o que vem depois com uma interpretação cheia de sentimento. Parece que Cassiano está cantando diante de sua filha.

Para terminar nossa conversa, trago o que considero uma das canções mais lindas da obra de Cassiano, "Salve essa Flor" ("Cassiano – Cuban Soul 18 Kilates" - 1976). Entendo "Salve essa Flor" como a complementação de "Melissa", no significado que a música nos revela. É possível interpretarmos que ela fala do amor, do seu surgimento, do cultivo do amor que deve ser sempre cuidado e mantido, mas o tom genésico trazido “De um jardim sem flor, nasce uma flor que vive só” me remete não apenas ao amor, mas até mesmo amor específico em relação à sua filha. Quais os percalços pelos quais esta Flor irá passar pelo caminho, pela vida “Mas existe o mal, que ela nem perceberá. Ervas tão daninhas, por perto, a envenenar”. A mesma preocupação com a vida de alguém, com os contatos e relações que este alguém passa a estabelecer também está em "Melissa": “Roda-roda que não quer rodar. Perante o mundo tu hás de ir, sem te ferir (hey)”. E Cassiano conclui que “Se não for a ajuda de alguém, ela vai, claro que vai, despetalar, morrer” mostrando que para o amor ou para a vida há a esperança de alguém vir ao socorro “Ninguém quer morrer, salve essa flor que vai morrer”. 

Em ambas, o toque essencial é toda a expressão de Cassiano com a sua interpretação sempre muito forte e profunda, emotiva, os arranjos sempre saindo do óbvio e do simplismo com letras que não são de um rebuscado demasiado, mas que apresentam uma profundidade abissal. Para além do tamanho da voz e da importância de Cassiano a delicadeza das duas letras e a profundidade do tema abordado nos deixam mais uma herança a possibilidade de entrelaçar a força com a delicadeza. Para mim, isso é muito Cassiano. Espero que o amor expresso por "Melissa", e a mudança trazida por ela a Cassiano e nos tragam a esperança de que ela, apesar de ter nos deixado nos seja esta Flor da qual ele se refere, e que sua música nunca morra porque não queremos que ela morra.

Leonardo Malcher

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