Sobre a Canção

A maturidade do Gigante Gentil

Sexta, 19 de julho de 2024

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A comparação da parceria de Roberto e Erasmo Carlos com as de John Lennon e Paul McCartney é batida, mas segue justificada, tanto em sua produção - os dois compuseram mais de 700 canções de 1963 a meados dos 2000. Nesse meio tempo, chegaram a interromper a parceria ao se desentenderem por alguns meses em 1967, e ambos pularam o muro eventualmente - Roberto compôs “Procura-se”, com Ronaldo Bôscoli e gravou-a em 1980, e Erasmo tem várias parcerias com Marcos Valle, entre outros.

Mas é nas canções feitas conjuntamente que mora o mistério. Diferentemente da parceria principal dos Beatles, que tem inúmeros exegetas para determinar o que foi composto por um ou por outro parceiro (além dos depoimentos de ambos ao longo do tempo), da parceria R&E Carlos pouco foi elucidado por seus integrantes, e só o que se consegue adivinhar vem da escolha de quem gravou - o que não significa muito: não há como garantir que, por exemplo, Roberto não tivesse parte ativa nos rocks tardios da dupla e só não os gravasse por ter direcionado sua carreira em outro sentido.

De qualquer forma, é justo supor que as canções gravadas por Erasmo sejam "mais dele", até mesmo, em alguns casos, pelo tema: canções que mencionam diretamente Narinha, mulher de Erasmo por décadas, como “Coqueiro verde” e “Mulher (Sexo frágil)”, provavelmente têm mais da sua mão, assim como boa parte das canções religiosas assinadas pela dupla são muito mais de Roberto. A partir de certo ponto, conforme suas carreiras vão divergindo, as personalidades das canções também se inclinam para um ou outro lado. Ou alguém duvida que a homenagem à modelo transexual Roberta Close tem muito mais de Erasmo que de Roberto?

Entretanto, mais que as diferenças estéticas que se acentuam entre eles, a divisão dos produtos das parcerias dos Carlos ilustra os diferentes amadurecimentos pessoais de cada um. Roberto passa de ídolo do iê-iê-iê ao principal nome da música romântica brasileira. E Erasmo, a seu modo, permanece fiel ao gênero que o consagrou, mesmo muito depois do fim da Jovem Guarda. Se para Roberto a mudança de estilo simboliza a sua própria maturidade, para Erasmo a metamorfose será mais sutil, mas a passagem de jovem "Parei na contramão" a adulto se mostrará ainda assim nas composições assinadas por ele e por Roberto, mas incluídas em seus álbuns. Por exemplo, “Sou uma criança, não entendo nada” e “Filho Único”.

“Sou uma criança, não entendo nada” abre o álbum “1990 - Projeto Salva Terra”, que, apesar do título, é de 1974. E “Filho único”, por sua vez, abre o álbum seguinte de Erasmo, “Banda dos contentes”, de 1976. Dois rocks. Harmonias elementares, entre três e cinco acordes no total. Melodias diretas, com várias linhas retas que se estendem, entoando letras igualmente diretas, sem metáforas: papo reto.

E aqui está uma das magias do formato canção. Não é a complexidade que lhe confere valor. Pelo contrário, a característica mais básica da canção é justamente dizer mais com menos. Qualquer obra de arte se define pela relação forma/sentido: ela será tão complexa quanto seja necessário para que seu sentido vá mais longe. Estes são o arco e a flecha da criação artística. E, no caso da canção popular, conseguir que uma forma simples arremesse o sentido a uma enorme distância é acertar na loteria - ou, se me permitem o trocadilho, na luteria: como o criador de um instrumento musical, realizar um artesanato muito específico e refinado, mas com um resultado final de uma simplicidade capaz de ressoar muito longe.

Ler as letras destas duas canções dá a sensação de estar ouvindo Erasmo dissertar: a coloquialidade é absoluta. Na primeira, uma consideração que poderia estar sendo feita numa roda de amigos próximos: na segunda, uma fala direta dirigida à mãe. Em ambas, uma enorme credibilidade do discurso em primeira pessoa. E em ambas também o mesmo tema: o amadurecimento, a passagem à vida adulta.

Processo que Erasmo já enfrentava há algum tempo, na verdade. Desde o álbum “Erasmo Carlos e os Tremendões”, de 1970, o Tremendão propriamente dito começava a pavimentar seu caminho para além da Jovem Guarda, em busca de novas possibilidades musicais. Aproxima-se do pessoal da Pilantragem, movimento quase fictício criado por Carlos Imperial e capitaneado por Wilson Simonal, que trazia um bocado de pop estrangeiro com um molho do samba carioca. Neste álbum de 1970, Erasmo grava canções como “Teletema”, de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar; “Saudosismo”, em que Caetano Veloso comenta a Bossa-Nova do ponto de vista da Tropicália; e até “Aquarela do Brasil” - ela mesma, de Ary Barroso. Escolhas bem distantes do rock juvenil, além de dois dos maiores sucessos de sua carreira, ambos parcerias com Roberto: “Coqueiro verde” e “Sentado à beira do caminho”. O jornalista Leonardo Lichote conta mais sobre esse álbum aqui

Mas as alternativas musicais que se apresentam ao Erasmo não o afastam do rock, apenas o fazem mudar a forma de encará-lo. Diferentemente de seu amigo de fé, ele vai amadurecer dentro do rock, por mais que abra espaço para outros estilos e seja o primeiro a gravar pérolas como “Queremos saber”, do Gilberto Gil, e “Paralelas”, do Belchior. E o espantoso é que composições como estas não soam estranhas ao lado dos rocks deste período, porque há neles justamente o retrato do amadurecimento de seu intérprete - o que não exclui um certo humor.

"Sou uma criança, não entendo nada" e “Filho Único” são canções complementares entre si e, até certo ponto, espelhadas. Além da temática, o formato das duas é similar - um AB que se repete integralmente com outra letra. E suas harmonias simples trazem alguns detalhes tão pequenos do rock'n roll, desde sua infância no blues, no uso da sétima desestabilizando os acordes que deveriam ser estáveis - e, neste caso, com consequências interessantes na interação com duas letras que tratam justamente da passagem da estabilidade da infância para os desequilíbrios da vida adulta.

Senão, vejamos: em "Sou uma criança, não entendo nada”, temos um primeiro grau maior, e em seguida passamos ao quarto grau, habitualmente de pouco desequilíbrio. Não aqui: o quarto grau tem a sétima abaixada, e a melodia dança na nota desta sétima nos versos “E fazia alguma coisa errada”, e na estrofe seguinte, em “Rezo muito mas eu não me iludo”. Ambas as frases, cantadas em linha reta, estão não apenas na nota mais instável do acorde, mas numa nota que, em tese, nem deveria estar ali. A sétima no quarto grau produz uma instabilidade harmônica, e a nota cantada na ponta deste acorde está numa posição desconfortável que não se resolve. 

Já em “Filho Único”, a sétima se apresenta de forma um pouco mais sutil. O vocativo que abre a canção “Ei mãe” se dá na quinta do acorde, e, na primeira vez que é enunciado, apenas violões o acompanham no acorde da tônica. Neste início, Erasmo já estabelece uma delicada transgressão no verso “Você já fez a sua parte” (que depois se repetira na estrofe seguinte, em “Eu sou seu único filho”) ao cantar a melodia descendente passando pela terça menor do acorde enquanto o acompanhamento toca o acorde maior. O batimento das notas traz um tempero bluesly à melodia, um sopro de rebeldia e de Jovem Guarda na composição.

Mas é a partir da segunda estrofe e nas repetições, já com o instrumental inteiro (guitarra, baixo e bateria, evidentemente) soando, que vai surgir a sétima desestabilizadora, e não na melodia principal, mas da do backing vocal. Pois ao bradar pela segunda vez “Ei, mãe”, o chamado de Erasmo é ecoado pelo coro ao fundo abrindo o acorde - e com a sétima menor brilhando na ponta. “Ei, mãe” se torna, ainda mais que antes, um grito de desafio e emancipação. O acorde que deveria ser o de estabilidade se torna ele mesmo instável, como que empurrando a harmonia na direção do quarto grau, pondo-a a caminho. E acho que não é necessário explicitar mais o paralelo entre estas relações harmônicas - que são percebidas pelo ouvinte independente de seu conhecimento musical - com as narrativas destas duas letras.

Erasmo já tinha mais de trinta anos ao gravar estas duas canções, era casado e em 1974 nascia seu primeiro filho – ou seja, já passara de filho para pai. Elas possivelmente retratam seu próprio amadurecimento pessoal retroativamente, mas são igualmente aplicáveis aos rumos artísticos que toma, a seu amadurecimento artístico, incluindo nele a decisão de manter um toque de rebeldia que foi se apagando aos poucos em seu parceiro mais querido - que, no entanto, permaneceu coautor de muito do que Erasmo gravou nos anos subsequentes, incluindo estas duas canções.

“Filho Único” realmente é uma composição da dupla. Mas "Sou uma criança, não entendo nada”, embora tenha sido inicialmente registrada como parceria entre os dois e esteja até hoje assim em muitos lugares, na verdade não é. Quem conta esta história é o jornalista Leonardo Lichote, que soube dela entrevistando o próprio Erasmo.

Conversando com Erasmo, Lichote elogiou a letra de “Sou uma criança, não entendo nada”, e Erasmo respondeu que a letra não era dele, e sim um poema de um amigo. Erasmo encontrou o poema escrito num caderno, musicou-o e, sem saber o autor, na hora de gravar registrou como sendo dele próprio - e, seguindo o trato antigo de registrar as composições de cada um como sendo da dupla, incluiu Roberto Carlos. Bem mais tarde, depois do sucesso da gravação, ele descobriu de quem era o caderno.

O autor da letra de “Sou uma criança, não entendo nada” chama-se Giuoseppe Artidoro Ghiaronni, jornalista e escritor com passagens pela Rádio Nacional e pela Rede Globo, e, embora em inúmeros registros seu nome não apareça, é ele quem está no site do ECAD, ao lado do de Erasmo Esteves - e sem Roberto. Lulu Santos incluiu-a no repertório do álbum “Lulu Santos canta & toca Roberto e Erasmo”. Ela passa longe de ser um corpo estranho no álbum, até porque Lulu também grava “Não vou ficar”, de Tim Maia, e “Você não serve pra mim”, de Renato Barros, eternizadas em gravações de Roberto. É provável que Lulu só tenha descoberto os verdadeiros autores na hora de pagar os direitos.

Erasmo só foi acrescentar outras parcerias à de Roberto em 1997, quando reportagens de jornal informaram que ele andava produzindo com novos parceiros. Por muitos anos, "Sou uma criança, não entendo nada" continuou sendo umas das pouquíssimas composições assinadas por ele com outra pessoa. Seu álbum de 2001 já tem canções apenas dele, e nos seguintes surgiriam canções feitas com Liminha, Nelson Motta e outros. Mas também com Roberto, novas ou antigas. Erasmo nunca fez questão desta emancipação em particular, e sempre demonstrou profundo respeito pelos caminhos artísticos tomados pelo parceiro. Sua maturidade, ao contrário do rompimento de “Filho único”, foi de continuidade e fidelidade até mesmo ao rock que o formou e consagrou, aliando seus dois apelidos imponentes: o Tremendão, de abalar estruturas, e o Gigante, porém Gentil.

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