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A vanguarda paulista de volta em caixa do Premê e inéditas do Rumo

segunda, 27 de maio de 2019

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A chamada vanguarda paulista, capitaneada por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, emergiu entre o final dos anos 70 e começo dos 80, quando o guichê da mídia de massa já estava fechado para o experimentalismo. Valia só o banal requentado. Prevalecia a turma que ficava “Mascando clichê”, como satiriza uma das composições de outro dos integrantes do movimento, o Premeditando o Breque. Formado por estudantes do Departamento de Música da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) por volta de 1976, o grupo só estreou em disco em 1981. Eles celebram uma data redonda na caixa de 7 CDs com sua obra completa, “Premê 40 anos” (Selo SESC). A mesma etiqueta recém lançou “Universo”, um disco de inéditas de mais um vanguardista paulistano, o Grupo Rumo, iniciado pouco antes, em 1974, unindo frequentadores do mesmo Departamento de Música da ECA-USP. O coletivo tem na formação atual Luiz Tatit, Ná Ozzeti, Hélio Ziskind, Akira Ueno, Paulo Tatit, Pedro Mourão, Gal Oppido, Ze Carlos Ribeiro e Geraldo Leite.


O Premê deu a partida com Igor Lintz Maués, Mario Manga, Marcelo Galbetti, Claus Petersen e, em seguida Wandi Doratiotto (notabilizado por sua participação em comerciais de TV, como o da Brastemp).

“Eles tomaram a liberdade de quebrar o protocolo da erudição reinante no ambiente, fugindo da batuta do professor, regente, compositor e pesquisador Olivier Toni”, descreveu o crítico Lauro Lisboa Garcia. Não tivemos formação clássica, mas formação musical”, diferenciam.

A criatividade nos arranjos os levou a formar uma espécie de grupo dentro do grupo, o Quinteto Paulistano de Cavaquinhos, protagonista de gravações como “Quase lindo”, o standard soul “Killing me softly with this song” e a “Marcha turca”, do erudito Mozart.

“Claro que sabíamos da grandeza do Mozart, ninguém brincou com esse tipo de coisa. Tínhamos aquele jeito de fazer arranjos engraçados, mas feitos como tal, com instrumentos que não combinam”, entregam. Autor do livro “Façanhas às próprias custas – A produção musical da Vanguarda Paulista (1979-2000), o mestre e doutor em História pela USP José Adriano Fenerick define o trajeto do grupo. “O Premê percorreu todos os caminhos sem se fixar em nenhum, com suas críticas ácidas e por meio de deslocamentos simbólicos, tanto do mito da ‘intelectualidade erudita’ quanto da ‘idiotização’ promovida pela indústria cultural”.

As inspirações populares do grupo ficam claras a partir de títulos como “Fecha a porta da direita com muito cuidado” (de “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa), sinfonia de ruídos do disco “Alegria dos homens”, que tem ainda uma versão punk/metal do épico samba canção “Ronda” de Paulo Vanzolini, e uma recriação minimalista ao violão, surdão e cavaco de “No morro da Casa Verde”, de Adoniran Barbosa. No CD “Quase lindo”, outra referencia ao ícone do samba paulista em “Saudosa maloca”. O título evoca um dos clássicos de Adoniran, “Saudosa maloca”, mas o rockão de guitarras segue por outro caminho: “hoje ouvi dizer que ela toca numa banda, bateria, rock’n’roll/ conhece muito bem os Rolling Stones, Talking Heads, tem fissura pelo Paul”. Já “São Paulo, São Paulo” valseia num clima de “New York, New York”, mas o enredo flerta com a distopia: “Na periferia/ a fábrica escurece o dia”. Outros mestres da escola bem humorada/ escrachada são evocados nas regravações do álbum de raridades “Como vencer na vida fazendo música estranha vol. VII”: o sertanejo/caipira Alvarenga, da dupla com Ranchinho, na hilária “Drama de Angélica” e o samba de breque “Festival de bolachadas”, da impagável dupla Jorge Veiga e Gordurinha



Desde o disco de estréia, o grupo já disparava do “Samba do absurdo” à “Marcha da Kombi”, além da “Feijoada total”, que termina numa sonora descarga sanitária. Em “Brigando na lua”, a pancadaria sai em “slow motion”: “Aí que eu briguei sem gravidade/ pontapé, soco no olho e cascudão/ tudo em câmara lenta”. No CD “O melhor dos iguais”, um jingle/spot em marcha “Abrigo nuclear” convida: "um recanto de sossego pra você e sua família/ e deixe o mundo queimar à vontade lá fora”. Caetano Veloso empresta voz a “Bem Brasil”, iniciada por trecho da carta inaugural do escrivão luso Pero Vaz de Caminha, sob forma de canto gregoriano, que deságua em samba enredo: “Aqui não tem terremoto/ aqui não tem revolução/ é um país abençoado/ onde todo mundo põe a mão”. O álbum “Grande coisa” abre na sarcástica “Pode vir crente que eu estou fervendo”, emoldurada pelo Coral do Colégio N.S. das Graças. No roteiro há ainda a homoerótica “Rubens” (“A sociedade não gosta/ o pessoal acha estranho/ nos dois brincando de médico”), de Mario Manga, que foi regravada por Cássia Eller e a tórrida “Império dos Sentidos” (de Wandi), temperada pelo cello de Jacques Morelembaum, Danilo Caymmi e Paulo Jobim assinam o arranjo da bossa com sotaque lusitano do mesmo autor, “Garota de Copacabana”. A mesoclítica salsa “Fi-lo porque qui-lo”, com acendrada percussão de Marçal, cita o discurso do presidente renunciante, Jânio Quadros. E tudo termina numa montagem sonora realizada nos estúdios do Conservatório Real de Haia, Holanda com a decupagem da palavra “Premê”. A caixa “40 anos” será lançada em shows do grupo de 31 de maio a 2 de junho no SESC Pompéia em São Paulo.

Já no circuito, o novo “Universo”, do Rumo dilata o trabalho autoral do coletivo. Todos os integrantes assinam ao menos uma faixa ou parceria do disco mais pop e menos “canto/falado” do grupo. “A linguagem sempre foi o maior trunfo do Rumo, os jogos de palavras os acordes surpreendentes somados a assuntos desconcertantemente cotidianos”, ressalta Zélia Duncan no texto do encarte. Sua assinatura é mais que apropriada, na medida em que ela foi uma das raras intérpretes pop que furou o bloqueio aos vanguardistas paulistanos e ainda protagonizou a estupenda peça “Tateando”, sobre a obra de um dos integrantes, Luiz Tatit. E é Tatit quem abre alas, com o sintomático “Toque o Tambor”, em ligação direta com as trevas atuais: “Quando não há mais o que fazer/ pegue essa baqueta obsoleta/ esquecida na gaveta/ e procure onde bater”. Parceria de Ná Ozzetti com Tatit, o quase jingle “Dengo” (“dengo tem prazeres que diferem dos que todos têm”) ondula em compasso de reggae. “Universo” dos irmãos Tatit, Paulo e Luiz, vaga numa marcha/ bossa paradidática (“fantasia/ é poesia que antes do som prenuncia/ que já está no ar”). Ze Carlos Ribeiro contribui com a satírica “Senha” (“decorei o RG, o CEP e o CPF/ número do meu telefone, nascimento, RENAVAM/ se pintar mais uma senha/ mando tudo pro inferno!”), que sobrecarrega esta era tecnológica, também presente em ‘Não se esqueça”: “Se estiver tão feliz/ se esquecer não faz mal/ só te peço não me exclua/ de tua rede social”. 

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Por sua vez, “Paulista” (Akira Ueno/ Pedro Mourão) destila lirismo (“pedalar, flanar, correr, andar pelo calçadão/ e ver passar tanta gente/ perambulando por lá”), em meio à babel de pregões de rua, da avenida mais famosa de SP. De Helio Ziskind, “Cada dia” evoca Lupicínio Rodrigues (“parece coisa à toa/ mas como a gente voa/ quando começa a pensar”) com surpreendentes efeitos sonoros. O cortejo termina em samba, no arremate “Maldade do tempo”, de Luiz Tatit, ao vocal e violão: “Tempo que vai e volta/ que não se atrasa/ nem sai na frente/ é só presente, presente, presente”.




Fonte das imagens: Divulgação


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