Colunista Convidado

Anaí Rosa atraca o secular Geraldo Pereira

terça, 11 de dezembro de 2018

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Quase o centenário do compositor Geraldo Pereira (1918-1955) ia saindo de fininho sem uma homenagem significativa. Mas o sempre proativo SESC SP lança o CD “Anaí Rosa Atraca Geraldo Pereira”. Paulista de Apiaí, formada em viola de arco pela Unicamp, a cantora integrou a Orquestra Sinfônica de Campinas, já gravou forró, gafieira e ritmos latinos, além de música erudita, e faz uma releitura do gênio do samba sincopado, com arranjos inovadores dos também produtores Cacá Machado e Gilberto Monte.

“Começamos a desconstruir certos caminhos harmônicos e melódicos já um tanto batidos em seu legado e nos sambas de sua época, trazendo outros climas e procurando entender profundamente o que estava sendo ‘atracado’ em cada canção”, define Cacá o conceito do disco.

Se não está ligando o repertório ao nome do ex-motorista de caminhão de lixo nascido em Juiz de Fora/MG, e escolado na Mangueira, de Cartola e Aloísio Dias - seus mestres de violão - refrescam a memória alguns megaclássicos do autor (e parceiros), gravados por João Gilberto, Gal Costa, Moreira da Silva, Cyro Monteiro, Gilberto Gil, Roberto Silva, Jorge Veiga, João Nogueira, Jards Macalé, Elza Soares, Miúcha, Zizi Possi, Luiz Melodia, Zeca Pagodinho. Só que inteiramente remodelados, como “Escurinho” (“já foi no Morro da Formiga/ procurar intriga/ já foi no Morro do Macaco, já bateu num bamba/ já foi no Morro do Cabrito/ provocar conflito/ já foi no Morro do Pinto acabar com o samba”) numa pegada leve, coloquial, desacelerada, cevada por guitarra e lamento de cuíca. “Falsa baiana” (“baiana que entra no samba só fica parada/ não samba, não dança/ não bole nem nada/ não sabe deixar a mocidade louca”) ganhou outra ginga, contraritmada com guitarra e teclados. O célebre samba de breque “Acertei no milhar” (“ganhei quinhentos contos/ não vou mais trabalhar”), apóia-se no minimalismo incisivo do violão sete cordas de Gian Correa, calota, tamborim e agogô de Douglas Alonso. Já “Escurinha” (“tu tens que ser minha de qualquer maneira/ te dou meu boteco/ te dou meu barraco/ que eu tenho no morro de Mangueira”) tem o desenho do trombone de Allan Abadia. “Pisei num despacho” salteado pela programação e synth de Meno Del Pichia, desguia o afro suburbano para outras paragens, tal como o conto satírico “Cabritada mal sucedida”, também costurado por sete cordas.

Ainda há pérolas menos óbvias, como o palhetado “Polícia no morro” (inaugurado pelo próprio Geraldo, um cantor estilista pré bossa, em 1952), outra delirante história de cabrito, com solerte participação do veterano mangueirense Nelson Sargento, contemporâneo do homenageado. Sua voz crestada também salpica de malícia “Falsa baiana” e “Que samba bom”, este lançado por Blecaute, em 1949. Duas cantoras célebres também fizeram debutar temas pouco conhecidos (mas sagazes) do autor. Em 1941, Isaura Garcia singrava o truncado bilíngüe “Pode ser?” (“porque é que você quando passa por mim/ não me dá mais bon jour/ eu sempre vi em você o meu rêve d’amour”), e a Aracy de Almeida coube “Falta de sorte”, no mesmo ano. A rara diatribe política “Ministério da economia” (disparada pelo próprio Geraldo, em 1951) ganhou um arranjo nervoso, acicatado pela guitarra de Leonardo Mendes. Inspiradora do título, pelos versos, “cadê o dono dessa dona/ se não tá/ vou atracar”, “Chegou a bonitona”, lançamento de Blecaute, em 1948, arregimenta o trombone luxuriante do samba-jazzista Raul de Souza. O secular Geraldo Pereira ganhou honraria à altura de seu talento.


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