Na Ponta do Disco

“Aos Brasileiros do séc. XXI”: Chico Buarque em “Bye Bye Brasil”

Sexta, 28 de junho de 2024

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O filme dirigido por Cacá Diegues de 1979 é por inteiro uma grande amostra de um Brasil entre o moderno e o arcaico. No campo da cultura podemos dizer que as tensões criadas pela modernização sempre se expressam em camadas sonoras – especialmente em uma usina musical como é o caso do Brasil –  e o filme capta e nos transmite a todo momento isso naquele momento do nosso país entre as décadas de 1970 e 1980 de transição cultural, política e social. Chico Buarque  assina a trilha sonora junto a Roberto Menescal e em sua canção homônima ao filma também expressa com maestria esse momento do Brasil de forma bem humorada, mas que no fundo traduz com densidade e pesar aspectos do que Roberto Schwarz chamou de “dois brasis irreconciliáveis” em 1969.  

Na película vemos a Caravana Rolidêi atravessar o coração do Brasil liderada pelo excêntrico Lorde Cigano (José Wilker), a Rainha da Rumba, Salomé (Betty Faria), e também, logo no início da narrativa a caravana circense é incorporada pelo sanfoneiro Ciço (Fábio Junior) e sua esposa Dasdô (Zaíra Zambelli)

Entre as múltiplas aventuras da trupe no Nordeste e Norte do país uma trilha sonora nos envolve com sons e canções que vão das procissões em devoção ao Pe. Cicero até canção “Dancin’ Days” (As Frenéticas) que marcou aquela geração. Tal trilha pensada e composta com maestria por Roberto Menescal e Chico Buarque é intencionalmente destoante como uma bricolagem de sonoridades e temporalidades. 

Tais colagens – aparentemente díspares – de elementos sonoros se somam aos elementos imagéticos que adensam a obra como cartazes de Roberto Carlos (num pau de arara e num bordel), referencias a “Índia” (Philips/ 1973) de Gal Costa na interpretação sensual de Betty Faria ao longo da trama e também aos referencias da moda que trazem  o kitsch do brega mas também as roupas extravagantes da Soul Music que estouravam nos Bailes Black em todo país. 

Tudo isso surge na película de Diegues mostrando um Brasil plural e moderno, mas cuja tradição resiste tanto num canto indígena da tribo que pede carona à caravana como no lamento sertanejo da sanfona de Ciço que é tocada magistralmente na trilha por ninguém menos que Dominguinhos

A letra da canção “Bye Bye Brasil” é também a síntese desse Brasil entre o arcaico e o moderno e também na letra mais longa que Chico já compôs. A melodia da canção aparece três vezes na película mas a letra só é cantada nos créditos do filme: “Eu vi um Brasil na tevê/ Peguei uma doença em Belém/ Agora já tá tudo bem/ Mas a ligação tá no fim” – Chico parece sugerir um Brasil que está mudando mas também enxerga nesse processo de modernização –  que coincide com a esperança da redemocratização – uma transformação irreversível da própria construção da modernidade brasileira que vem da semana de 1922. 

Podemos refletir sobre esta obra fílmica/musical de Chico juntamente com seu álbum “O Grande Circo Místico” (Som Livre/ 1983) e seus álbuns da virada da década de 1970 e 1980 como visões do Brasil moderno em um sentido anti-teleológico. De certa forma são obras de um artista que se construiu no bojo do “modernismo musical” brasileiro da Bossa Nova, mas que traz uma profunda crise interna de como esse próprio modernismo ressoa em um novo Brasil: amplo, multifacetado e indefinível – como sugere diversos trechos da canção:

“O chefe dos Parintintins/
Vidrou na minha calça Lee/
Eu vi uns patins pra você/
Eu vi um Brasil na tevê/
Capaz de cair um toró/
Estou me sentindo tão só/
Oh, tenha dó de mim/
Pintou uma chance legal/
Um lance lá na capital/
Nem tem que ter ginasial/
Meu amor/

Chico é um agente de um “longo modernismo brasileiro”, mas que assiste a toda indústria cultural “comendo tudo pelas beiradas” e a massificação cultural operada pelos meios de comunicação criando um outro padrão de consumo que pouco ou nada tem relação com um projeto moderno arquitetado pelos baluartes da Semana de 1922. 

A autocritica presente na obra é quase como um cerrar das portas daquela ideia de um projeto de país que estava tão latente no fim da década de 1950 e inicio de 1960. Há uma certa lamentação desse projeto de país “que não foi”, mas ao mesmo tempo  uma verificação da realidade concreta do país dentro do quadro de esperança do fim dos anos de chumbo em direção à democracia, mas também de constatação das contradições abismais de um país absolutamente plural e multiétnico que se conecta cada vez mais a uma nova modernidade da indústria de massas e da música estrangeira. 

No entanto não há exatamente uma solução, ou mesmo a ideia de um novo projeto de Brasil, mas sim uma verificação de uma nação que se recusa a ser definida e ser posta em um projeto de nação-povo. O Circo – seja a “Caravana Rolidêi”, seja o “Grande Circo Místico” (inspirado no poema simbolista de Jorge de Lima de 1938) – representa nesse sentido o artista “cigano-narrador” que vaga pelo Brasil trazendo encantamento. Não mais na “missão ingênua e teleológica” de levar o povo a desalienação, como era de praxe nas “disparadas” dos anos 1960, mas sim parte integrante e problemática das próprias contradições desse país inexprimível e eternamente preso ao karma da relação entre o arcaico e o moderno, entre o cosmopolita e o “folclórico”. 

No fim da película –  antecipando o frisson dos pós-créditos dos filmes de ação da atualidade – surge em letras garrafais: “AO POVO BRASILEIRO DO SÉCULO XXI” –  e talvez cem anos depois da fatídica semana de arte moderna de 1922 ainda possamos nos questionar: o que é ser moderno no Brasil? E se alguma arte pode nos ajudar a entender isso em nosso país definitivamente é a música. Nesse sentido “Bye Bye Brasil” além de ter uma trilha sonora privilegiada de Chico e Menescal é talvez um ponto de clivagem para entendermos melhor, por meio da música e do filme, as contradições e possibilidades de nossa nação que ainda flutua em berço esplendido entre o moderno e o arcaico. 


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