Colunista Convidado

As cantoras do rádio – Pioneiras desbravadoras do universo musical feminino brasileiro

sábado, 11 de maio de 2019

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Elas foram as cantoras do rádio e levaram a vida a cantar, embalando os sonhos dos ouvintes num tempo que a imagem dos artistas ainda não era importante, que a sedução vinha por meio de suas vozes. Nada mais. Foram três décadas em que o rádio era o grande veículo de diversão e informação, e elemento fundamental da difusão e popularização da música brasileira, e mais ainda, igualmente essencial para o culto à personalidade dos grandes cantores, já que o próprio disco de 78 rpm nas primeiras décadas do século também era um produto ainda elitista, e somente após o advento do rádio comercial, em 1932, a música popular brasileira foi aos poucos se convertendo num negócio mais lucrativo em nível nacional. A imagem só foi rivalizando com as suas vozes lentamente a partir dos anos 1950, quando a televisão foi implementada no país (mas ainda muito elitizada) e as revistas especializadas – trazendo à toda hora suas estampas – começaram a virar moda.

Os homens foram os primeiros a virar ídolos da música, pois o mundo era feito para eles. Ser mulher naquele tempo não era fácil. Almejar ser artista pior ainda. Cantora não era profissão decente. Mas algumas bravas guerreiras não se intimidaram, subverteram o esperado, e provaram que era possível sim uma mulher cantar, ser estrela e se fazer respeitada. Nos primórdios de nossa discografia, de 1902 a 1927, tempo da gravação mecânica, apareceram algumas poucas vozes femininas, muitas vezes em duetos com os varões da época, na maioria, atrizes/vedetes do teatro de revista. A primeira a ter uma carreira regular, ainda que breve, como cantora foi Aracy Côrtes, entre 1925 e 35. Mas a primeira cantora realmente a arrebatar corações com sucesso retumbante foi Carmen Miranda.

Carmen foi a maior cantora da década de 1930. Brilhou no disco, como estrela da Victor e Odeon, na Rádio Mayrink Veiga e depois nos Era dos Cassinos – cujo auge foi de 1936 até a proibição do jogo, dez anos depois. Foi no num deles, no da Urca, que ela foi descoberta por um empresário americano que a levou para a “América”, onde faria apenas uma participação numa “revista” local, mas em poucas semanas já era o primeiro nome nos letreiros. Lá se transformou numa atriz-comediante de êxito internacional, chegando a ser por um período o maior salário de toda Hollywood. Aqui, porém, foi uma cantora à frente do tempo, primeiro por já entender a importância da performance e de uma interpretação mais coloquial e teatralizada, depois também por não gostar de músicas tristes, num tempo em que a melancolia predominava nas músicas românticas e até em algumas mais ritmadas.

Seu misto de malícia e ingenuidade, juntamente com seu faro para grandes canções, consagraram lindos sambas e marchas de Ary Barroso (“Na Baixa do Sapateiro”, “Eu dei”), Lamartine Babo (“Chegou a hora da fogueira”), Custódio Mesquita (“Quem é?”, em duo com Barbosa Júnior), Assis Valente (“Camisa listrada”, “Uva de caminhão”), Synval Silva (“Adeus, batucada”), além de lançar Dorival Caymmi, gravando em duo com ele, “O que é que a baiana tem?”. Sua irmã Aurora Miranda também teve um breve período de sucesso na mesma década, gravando a inesquecível “Cidade maravilhosa”, de André Filho, e em duo com a mesma Carmen a marcha que cito na abertura deste texto, “Cantores de rádio”, de Braguinha, Alberto Ribeiro e Lamartine Babo. 

Ainda nos anos 1930, surge O Samba em Pessoa, Aracy de Almeida, considerada por muitos a maior sambista da história, com sua voz nasalada, sua irreverência e também um baita bom gosto para escolher repertório. Foi a grande intérprete de Noel Rosa (“Palpite infeliz”, “O x do problema”, “Último desejo”), mas também de Wilson Batista (“Louco (Ela é seu mundo)”) e Haroldo Lobo (“O Passarinho do Relógio”). Foi a lançadora de “Camisa amarela” (Ary Barroso) e de outros sambas imortais como “Tenha pena de mim”, “Não me diga adeus”, “Fez bobagem” e “Saia do (meu) caminho”. Em contrapartida, com repertório bem mais irregular surgiu outra boa sambista,  Odete Amaral, que teve um longo relacionamento com o maior cantor de sambas da época, Cyro Monteiro, teve seu maior êxito na gravação do choro “Murmurando”, de Fon-Fon e Mário Rossi.

Carmen Miranda e Aracy de Almeida seriam as grandes referências de Isaurinha Garcia, única cantora paulista que não precisou morar no Rio para estourar nacionalmente, numa época em que isto era praticamente impossível. De personalidade divertida, com seu sotaque italianado inconfundível, começou a gravar em 1941, enfileirando sambas nas paradas como “De conversa em conversa”, “O sorriso do Paulinho” e “Mensagem” (“Quando o carteiro chegou/ E o meu nome gritou com a carta na mão...”). Em 1942, surge a potiguar Ademilde Fonseca, cantora de afinação e ritmo admiráveis, pioneira do choro cantado, interpretando os versos numa velocidade impressionante sem prejudicar a compreensão do texto. Começou descolando uma letra para o velho “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de Abreu. Depois, imortalizou muitos outros clássicos atemporais do gênero, como “O que vier eu traço” e ainda “Pedacinhos do céu” e “Brasileirinho”, ambas de Waldir Azevedo.

Filhas de um famoso ventríloquo, Batista Junior, Dircinha Batista e Linda Batista foram duas das maiores cantoras da Era do Rádio, amigas até mesmo do presidente Getúlio Vargas. A primeira, de voz mais suave e repertório eclético, começou ainda adolescente, emplacando a marcha “Periquitinho verde” no carnaval, e a segunda, embora três anos mais velha, começou logo a seguir, sendo uma sambista arrasta-quarteirão, com uma personalidade expansiva e divertida. O auge de ambas foi entre o fim dos anos 1940 e a primeira metade dos 50. A primeira com o samba-canção “Nunca” e os carnavalescos “Máscara da face” e “A mulher que é mulher”, a segunda com “Vingança”, “Volta” (ambas de Lupicínio Rodrigues) e “Risque” (Ary Barroso) – as três já na fase do samba-canção, gênero preponderante do fim dos 1940 varando toda a década seguinte – e muitas canções de carnaval. 


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