A música de

As esquinas musicais de um clube imaginário

por Bruno Viveiros Martins

quarta, 22 de abril de 2020

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O disco Clube da Esquina, lançado por Milton Nascimento e Lô Borges em 1972, é reconhecido atualmente pela crítica especializada como um dos marcos divisores da produção fonográfica do século XX devido à sua ousadia musical, variedade rítmica e experimentação, até então incomuns na canção popular brasileira.

Esse álbum duplo – o primeiro a ser gravado em estúdio no país – é considerado também a consolidação das inovações criadas por Milton Nascimento e seu parceiros, desde que se encontraram em meados da década de 1960 em Belo Horizonte. A multiplicidade sonora e a diversidade cultural, características presente na trajetória do grupo, são resultantes da energia coletiva e do espírito gregário, responsáveis por grande parte do desenvolvimento artístico e pela originalidade que caracterizou a trajetória do Clube da Esquina – nome com o qual passaria a ser conhecida a turma de amigos congregada pelo compositor e formada por Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Wagner Tiso, Toninho Horta, Lô Borges, Beto Guedes, Nelson Angelo, Tavinho Moura, entre outros.

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O mistério criativo das esquinas de Belo Horizonte

Esquina é sempre um lugar de surpresas. Mais que pura paisagem urbana, a esquina é o ponto da cidade que se define pela primazia dos encontros. Para um olhar mais atento, porém, as esquinas ganham outros significados. Geralmente, quem nela se depara, assim como em uma encruzilhada, está também diante do desconhecido. Para quem precisa tomar uma decisão ou buscar um novo rumo, a esquina sugere uma pausa para reflexão, antes de seguir a direção escolhida. A esquina exige também atenção e vigilância, pois é um lugar propício para o acaso e o imponderável. No exercício da dúvida e da escolha livre, ela nos impele a uma decisão à medida que oferece novos caminhos entre a realidade e a utopia. Há quem diga que o presente, sempre aberto e lacunar, seria a esquina entre os resquícios do passado e as possibilidades de futuro. A esquina seria, portanto, um lugar físico e simbólico em que se cruzam possibilidades de diálogos, pluralidade de ideias, debate de opiniões, polifonia de vozes passadas e futuras. Entendida como uma amálgama feita de concreto e sonho na qual se fundem o real e o imaginário, a esquina seria, sobretudo, um convite para ir além do que já foi vivido. De preferência, na companhia de um amigo.

Fundar clubes, grêmios e associações junto a amigos dignos de confiança é uma tradição na capital mineira, conhecida como a “cidade das esquinas” – em vista de seu traçado urbano, formado por ruas e avenidas cortadas perpendicularmente em ângulos de 90 e 45 graus. A história de Belo Horizonte registra agremiações literárias, artísticas, culturais, recreativas, cívicas, carnavalescas, esportivas entre várias outras. Sejam instituições centenárias, com duração efêmera ou de atuação esporádica, os clubes são responsáveis por aproximar os indivíduos do mundo público, facilitando o intercâmbio de experiências e desenvolvendo o espírito crítico em relação à vida cultural, social e política da cidade e do país. Existem, porém, os clubes restritos a certos círculos que se fecham em torno do convívio entre seus pares. Nesse caso, a seleção dos sócios visa a tentativa de certas associações de se resguardarem da presença de indivíduos e de ideias incômodas ao seu universo.

Como nem todos podiam frequentar os clubes da cidade, a solução encontrada por Milton Nascimento, Lô Borges e os demais compositores foi fundar uma agremiação constituída por todos os seus amigos. Ela não teria sede social. Ou melhor, essa não passaria de uma simples beira de calçada no cruzamento entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis no bairro de Santa Tereza. No lugar, nasceu de forma espontânea, sem data de fundação a ser comemorada, ata de reunião, lista de presença, cobrança de mensalidades e, menos ainda, carteira de sócio. Nem mesmo seus integrantes de primeira hora sabem ao certo quando tudo começou. A única certeza é que a amizade nasceu antes de qualquer canção.



Autoria compartilhada, canções improváveis, grandes sucessos

Juntos, os integrantes do Clube da Esquina criaram uma nova musicalidade estruturada a partir da fusão de diversas tendências aparentemente irreconciliáveis. Enquanto alguns de seus integrantes, por influência dos Beatles e Rolling Stones, recorriam às guitarras em distorção com timbres muito próximos aos do rock, outros por sua vez, trouxeram a vocalização improvisada e o uso de harmonizações mais livres recorrentes nas novas tendências do jazz feito na época. A harmonia dissonante, característica da Bossa Nova está presente na mesma medida que elementos sonoros tradicionais do interior mineiro estão em diálogo com a canção da América de origem espanhola. Os arranjos do grupo não são apenas comentários da melodia. Ao contrário, eles constroem ambientações experimentais que trazem ressonâncias da arte barroca com fortes traços do congado e da cultura negra ancestral em Minas Gerais.

O disco Clube da Esquina foi concebido como uma obra de arte conjunta, possuindo uma unidade conceitual, à maneira dos discos Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band lançado pelos Beatles em 1967 e Tommy, ópera-rock do grupo inglês The Who de 1969, discos fundamentais para a história da música do século XX. Essa era a ideia de Ronaldo Bastos, personagem que recebeu de Milton Nascimento a responsabilidade por conduzir o processo de criação e produção do LP que não se limitou a ser apenas um similar brasileiro de grandes projetos musicais produzidos no cenário internacional. O Clube da Esquina configurou-se, por si mesmo, em uma das contribuições mais surpreendentes do cancioneiro brasileiro ao rico panorama da canção ocidental da época.

Para quem já havia cantado “Sou do mundo, sou Minas Gerais”, como fez Milton Nascimento em “Para Lennon e McCartney” – canção que anunciava dois anos antes sua inclinação para estabelecer diálogos entre culturas aparentemente desconexas, própria da concepção artística presente no Clube da Esquina – a busca por cruzar fronteiras sonoras não era um caminho desconhecido pelos compositores. As esquinas musicais abertas por esse disco nos conduzem a tempos e lugares múltiplos percorridos pelo cantor. Sua música fala todos os idiomas. Modernidade e ancestralidade se conjugam nessa obra aberta e universal. Para muitos, o disco Clube da Esquina antecipou o que seria conhecido mais tarde como world music. Talvez por isso, o disco apresenta forte propensão para temas e experiências como viagens, estradas, caminhos, deslocamentos, passagens e errâncias dispostas em canções como “Tudo que você podia ser”, “Nuvem cigana”, “O trem azul”, “Saídas e bandeiras”, “Cais”, “Trem de doido”, “Um gosto de sol”.

4 versões pra quem ama o Clube da Esquina

Grande parte do repertório do disco foi composta na praia de Mar Azul, em Niterói. Em um sobrado fincado na areia na enseada de Piratininga, durante aproximadamente seis meses, os artistas criaram melodias, letras, arranjos que seriam registrados no disco. O ambiente gregário gerado pela participação intensa dos compositores e instrumentistas envolvidos na produção, e também por seus convidados que passavam temporadas na casa da praia, foi determinante para as composições. Esse também foi o clima vivenciado nos estúdios durante a gravação.

Das vinte e uma faixas que integram o LP, dez foram assinadas por Milton Nascimento. Lô Borges é o autor de sete. A canção “Clube da Esquina Nº2” foi a única parceria criada pela dupla para esse disco. As letras foram dividas entre Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Márcio Borges. O set list é completado pelo bolero “Dos cruces” de Carmelo Larrea e “Me deixe em paz”, samba de Monsueto e Ayrton Amorim que contou com a participação especial da cantora Alaíde CostaEumir Deodato (arranjos), Paulo Moura (regência) e Gonzaguinha (vocal) também foram convidados a participar.



Nesse aspecto, o disco é uma grande celebração da amizade experimentada cotidianamente por artistas de diferentes gerações. Embora Milton Nascimento e Wagner Tiso estivessem nos “bailes da vida” há um bom tempo, a maioria deles havia estreado em suas carreiras poucos anos antes. Em 1971, ano inicial das gravações do disco, Lô Borges e Beto Guedes possuíam, respectivamente, 19 e 18 anos de idade. A mescla entre a juventude e experiência foi um dos fatores fundamentais para constituição de uma musicalidade consistente e densa, marcada também pela experimentação e um frescor de novidade.

"Amigos, amigos, o negócio faz parte": Tempo de multiartistas

Essa via de mão dupla entre amizade e canção é evidenciada pelas parcerias que nutriram desde o primeiro momento a carreira dos compositores. De todas as canções assinadas por eles no disco, apenas “Lilia”, tema instrumental com autoria de Milton Nascimento dedicado a sua mãe não foi composta em parceria com um amigo. A identificação dos nomes dos instrumentistas que atuaram em cada uma das faixas informada nos créditos do encarte reafirma a importância da presença de todos para o resultado final do trabalho.

A prática colaborativa própria da amizade é evidenciada inclusive na disposição dos participantes na execução sempre revezada dos instrumentos. Beto Guedes, por exemplo, tocou guitarra, baixo, percussão, viola, carrilhão, além de dividir os vocais com Milton Nascimento em “Nada será como antes” e “Saídas e bandeiras”. Toninho Horta, conhecido internacionalmente pela habilidade com sua guitarra, tocou também violão, percussão, e baixo. Já Nelson Angelo ficou a cargo do violão, da guitarra, da percussão do surdo, além do piano na faixa “Pelo amor de Deus”. Aliás, nem mesmo Milton Nascimento e Lô Borges possuíam instrumentos específicos ou funções predeterminadas. O coro, utilizado diversas vezes ao longo do disco, era formado por qualquer um que estivesse no estúdio no momento.

As fotos e o projeto gráfico do encarte também fazem referência à relação de amizade como uma espécie de fio condutor do trabalho. Todas as pessoas presentes no processo, sejam compositores, instrumentistas, cantores, produtores, técnicos, ou simplesmente amigos, foram clicadas no estúdio em Mar Azul e Belo Horizonte pelos fotógrafos Cafi e Juvenal Pereira. A capa do LP criada por Cafi com a colaboração de Ronaldo Bastos é uma das mais icônicas de toda a canção popular brasileira. A foto dos dois meninos anônimos sentados na beira da estrada, envoltos pelo verde da mata e o tom amarelado da terra com o arame farpado sobre suas cabeças foi tirada da janela do carro durante uma viagem em companhia de Ronaldo Bastos à Friburgo. Ela é genial na medida em que é capaz de dizer, sem palavras, não apenas o que o ouvinte iria escutar ao comprar o disco, mas também revela metaforicamente o que era o Brasil em pleno governo ditatorial do general Médici. Além disso, ela contrariava qualquer estratégia mercadológica ao não mencionar o título do disco ou o nome dos dois intérpretes, fato que deixou a direção da gravadora atônita.

Apontar uma ou outra canção como destaque em todo esse universo seria uma tarefa um tanto temerária. Várias delas apresentam características que as tornam singulares ao mesmo tempo em que contribuem, cada uma a seu modo, para a unicidade que permeia a obra. Em “Nuvem cigana”, por exemplo, temos o primeiro arranjo de orquestra escrito por Wagner Tiso para uma composição de Milton Nascimento. O solo de guitarra leve e quase despretensioso de Toninho Horta na balada “O trem azul” foi citado na íntegra por Tom Jobim, em forma de homenagem, na regravação dessa canção traduzida para o inglês, feita pelo maestro soberano quase vinte anos depois. “Cravo e canela” é um samba composto em compasso 3/4, exemplo raro do gênero musical de natureza binária, ou seja, executado tradicionalmente em dois tempos desde suas origens no Rio de Janeiro e na Bahia. Através do ritmo e pulsação incomuns dessa canção, Milton Nascimento resgata uma África ancestral pouco conhecida dos brasileiros, mas presente no interior mineiro em congados, candombes, catopês, folias de reis. “Nada será como antes” está entre as primeiras composições com sonoridade pop de autoria do autor. Seu motivo ritmo-melódico, as guitarras em distorção, a vocalização no estilo progressivo, entre outras semelhanças de acorde e harmonias lembram A litlle help from my friends, canção na qual os Beatles devotam especial apresso às amizades, também presente na letra escrita por Ronaldo Bastos.

"Resistindo na boca da noite"

San Vicente” é uma das canções que inaugura o diálogo do Clube da Esquina com os sons da América Hispânica em razão de sua estrutura melódica em que se destaca a batida, ora dedilhada, ora rasqueada do violão de Tavito feita no compasso ternário à maneira habitual dos músicos sul-americanos. Já o carrilhão de sinos executado por Beto Guedes quase ao final da gravação remonta à religiosidade popular muito forte no estado mineiro. Segundo a fé cristã, o som emitido pelos sinos dissolveria as limitações terrenas, servindo como elo de reconciliação entre o céu e a terra. O toque dos sinos teria o poder de purificação, exorcizando as influências obscuras e as más intenções. Em se tratando dos versos dessa canção, é manifesta a preocupação dos compositores frente às restrições políticas vividas num tempo carregado de alucinações, angústia e medo, as quais se espalhavam por toda a América do Sul através de sucessivos golpes de estado durante os anos 1960 e 1970.



Nesse contexto, os compositores conviveram inevitavelmente com um país governado pelo autoritarismo, pela perseguição aos opositores e pela restrição da liberdade. Esse foi um período de graves violações dos direitos humanos, censura e repressão. Em tempos de ditadura militar, inventar era considerado um ato temerário, verbo de conjugação proibida. Não para os compositores do Clube da Esquina que viam a realização de suas fantasias como condição para a transformação de uma realidade insuficiente. Para tanto, era preciso cantar e imaginar um futuro sem as amarras e as ameaças vividas até então. Esse novo tempo não seria construído de um dia para o outro. Pelo contrário, seria necessário “resistir na boca da noite” durante mais de uma década para experimentar novamente “um gosto de sol”, revivido com a redemocratização do país, em 1985. Por enquanto, esses seriam ainda anos turbulentos com “sabor de vida e morte”.

As composições do LP Clube da Esquina nos sugerem alternativas que preenchem com outras ideias, princípios e valores as falhas e lacunas do mundo real. A utopia humanista própria de suas narrativas musicais reside, acima de tudo, na crítica ao presente que possibilita a abertura incondicional para diferentes formas de ação e imaginação. Disposição artística, ética e política que envolve o desejo, a fantasia e a esperança de experimentar algo radicalmente novo. Suas canções propõem um horizonte de expectativas sempre aberto e ao alcance da mão humana. Dela depende “tudo o que você consegue ser, ou nada”.  O clube não pertence a uma única esquina. Ele é universal. Está por toda parte e pode ser encontrado entre sons, sonhos e amizades.

Fonte das imagens: Internet



Bruno Viveiros Martins é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autor de Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina (Editora UFMG, 2009). Curador das exposições “Canção Amiga – Clube da Esquina” e “Da janela lateral”, realizadas pelo Centro de Referência da Música de Minas. Produtor do programa Decantando a República, da Rádio UFMG Educativa 104, 5 FM.


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