Colunista Convidado

Augusto Martins e Paulinho Pauleira celebram Aldir em 'Como canções e epidemias'

segunda, 20 de setembro de 2021

Compartilhar:

Foi a bossa nova, na passagem dos anos 50 para os 60 do século passado, que subverteu o ofício de cantor no país. Capitaneada pela anti-empostação vocal de João Gilberto, um egresso de conjunto vocal, devoto da emissão cálida da primeira fase do cantor das multidões, Orlando Silva, a bossa democratizou o microfone. Do bel canto antecessor - para cantautores que “davam seu recado”. Antes, o compositor era obrigado a “colocar” a música com o intérprete – que, na maioria das vezes, só interpretava. Noel Rosa, Ataulfo Alves, Dolores Duran, Maysa e Dorival Caymmi, eram alguma exceções. Só que a equação se inverteu. Da apelidada “voz de peixe” de Vinicius de Moraes ao não menos submarino Baden Powell, para citar dois exemplos paradigmáticos, muitos autores ocuparam os microfones, e o cantor-cantor, especialmente na seara masculina, passou a rarear.

O carioca Augusto Martins (dos Santos), filho do cantor Alair dos Santos, que iniciou carreira em casas noturnas e festivais, e estreou em disco com seu nome, em 1997, pontifica seu timbre de tenor entre estes raros, numa carreira de escolhas meticulosas. Acaba de sair o songbook “Como canções e epidemias” (Independente), seu oitavo álbum, o segundo que ele gravou com o pianista Paulo Malagutti de Souza Weglinski, o Paulinho Pauleira (que começou como baterista de rock), numa abordagem pouco usual da obra do monumental poeta, escritor e letrista Aldir Blanc.

O bardo da Muda da Tijuca teria completado 75 anos este mês, não tivesse sido levado pela Covid 19, em maio do ano passado. Daí, a referência dolorida do título, fisgada na letárgica faixa de abertura “Caça à raposa” (parceria com João Bosco): “ah, recomeçar, como canções e epidemias/ como as colheitas/ como a lua e a covardia/como a paixão e o fogo”. Augusto vai do rascante ao falsete, Pauleira, (atual integrante do MPB-4, fundador dos grupos vocais Céu da Boca e Arranco de Varsóvia) pavimenta o tema com acordes espraiados. “O critério para escolha de repertório foi a partir de dois prismas: nossas paixões e uma pesquisa profunda”, disseca Augusto. “Li todas as letras. Todas. Escolhemos separadamente aquilo que cada um achava que não podia faltar ou que nos fosse muito especial, sendo raro ou sucesso”, define. “O Aldir me exige tudo que tenho no coração de músico brasileiro. Mergulhar nessa obra é uma festa que qualquer carioca gostaria de ser convidado. Letra e música no melhor dos mundos, entre a zona sul e a zona norte da nossa cidade”, complementa Pauleira.

Embora tenha semeado sucessos ao longo de sua trajetória iniciada no tijucano MAU (Movimento Artístico Universitário), ao lado de Gonzaguinha, Ivan Lins, Cesar Costa Filho, Silvio da Silva Jr, Marcio Proença, entre outros, no começo dos anos 70, o baterista e psiquiatra Aldir Blanc Mendes (1946-2020) nunca foi de cortejar platéias. Muito ao contrário, embora tenha emplacado, por exemplo, “Resposta ao tempo” (parceria com o pianista Cristóvão Bastos), na voz de Nana Caymmi, na minissérie “Hilda Furacão”, da TV Globo, de 1998. Na releitura do disco, a indumentária de bolero é trocada por uma levada mais etérea, com Augusto ressaltando seu cenário onírico (“e o tempo se rói com inveja de mim/ me vigia querendo aprender/ como eu morro de amor para tentar reviver”), e Pauleira adicionando uma citação de outra obra de Cristóvão, esta com Chico Buarque, “Tua cantiga”. Mais uma canção expropriada por intérprete, “Corsário” (parceria com João Bosco), êxito de Ney Matogrosso, em 1975, é remontada pela dupla num clima menos escarpado que o do antecessor.

Foto: Felipe Varanda

Já a ode proletária “Rancho da goiabada”, outra com Bosco, (“os bóias frias/ quando tomam umas biritas/ espantando a tristeza/ sonham com bife-a-cavalo, batata frita/ e a sobremesa/ é goiabada cascão, com muito queijo”), crismada por Elis Regina, em 1978, despe sua cadencia fulcral de marcha rancho, por um marejar de acordes rebatidos. Eles são abertos por moldura vocal arrojada, e, adiante, uma evocação do clássico da canção americana, “Summertime”, de George e Ira Gershwin. Todas as demais canções do disco são pouco conhecidas, mas há uma inédita de fato, “Muito além do jardim”. “A canção nasceu pelo desejo de Moacyr Luz em fazer com Aldir uma canção complexa como as que o letrista vinha criando com Guinga”, informa Hugo Sukman no analítico texto de apresentação. “Que maravilha, a buganvília” (pincela na letra o virtuose Aldir)/ e o calmo dela no verão/ as flores tantas vem dizer/ que choram por mim”. Ainda da dupla Moacyr/Aldir (que foram vizinhos de prédio na rua Garibaldi, na Muda da Tijuca) é o samba de roda de letra redentora (“o suor da alma/ transparece na cor/ com malícia e rapa/ é que o negro escapa/ das lições do feitor”), cadenciado por palmas,“Filha de Núbia e Nilo”. Ele desce, batucado no piano, com o grave timbre de Augusto em duo com as agudezas de Zé Renato, na única participação do disco. De Aldir com o supra–citado Guinga é a valsa “Odalisca”, que evoca a heráldica “Monalisa”, hit de Nat King Cole, recoberta por demãos libidinosas: “Ela sonha mais do que podia ter/ embriagada nas ondas do prazer/ a boca é vinho tinto/ as mãos são de absinto/ e a cintura dela é estrela por nascer”.

O teclado emula imaginários tamborins em “Êxtase”, parceria repleta de acidentes harmônicos, característica da caligrafia de Djavan, em que Aldir aproveita para externar sua devoção de torcedor, à hoje esmaecida Cruz de Malta: “Eu devia ter sentido o teu rancor/ mas tava doido num jogo do Vascôôô/ eu fiquei cego na estrada de Damasco”. Ex-colega de MAU, Ivan Lins fornece a sutil matéria prima musical da minimalista “Por favor” (“eu que amava o singular/ eu, que desmanchava o par/ só penso em pedir/ me invade, por favor”), na entonação suplicante de Augusto, outro carioca da Tijuca, e médico formado, como o homenageado. Também cevado nas noitadas tijucanas do MAU, Marcio Proença co-assina “Retrato cantado” (“mas eles não sabem que eu sou o gigolô da beira de cais/ que eu sou o autor do crime da mala/ que eu larguei o trapézio/ por beber demais”), de letra farpada, como a de “Querido diário” (“essa mulher me convulsiona/ o ar de mártir no calvário/ dentro da bacanal romana”), esta, em parceria com João Bosco, aberta por leve scat vocal, arquitetado por Pauleira.

No leque das parcerias do disco não faltam os toques femininos da baiana Rosa Passos (a desiludida “Causa perdida”) e da carioca, criada na mineira Juiz de Fora, Sueli Costa (“Altos e baixos”, do verso lancinante, “o amor traz tanta vida, que até pra morrer/ leva tempo demais”). O compositor Sombra, do núcleo pagodeiro do Fundo de Quintal (“Vale a pena ouvir de novo”) adensa a diversidade da cartografia blanquiana, uma das mais frondosas da MPB: “Sem você, o Rio de Janeiro perde o mel/ e a vida anda feito um carrossel/ que às vezes pode enganar/ mas não sai do lugar”. Um réquiem/gurufim para a perda irreparável do poeta da cidade que ele universalizou em versos afiados e comoventes.

Tárik de Souza

Comentários

Divulgue seu lançamento