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Baile Charme Show: Uma sexta-feira do Santo Black Rio

Por: Gabriela Rodrigues

sexta, 03 de maio de 2019

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TUM TUM Tum tum... TUM TUM Tum tum... TUM TUM Tum tum... TUM TUM Tum tum...

O grave começa a vibrar, impulsos, em pulsos, pulsão o coração, em um batuque. Que som é esse? É samba, é jazz, é R&B, é soul, é rap, é blues, é bossa, é rock, é punk, é reggae, é hip hop, é pop, é gospel, é dance, é street, é charme, é funk, É BLACK!

Incorporando o mestre Mister Paulão Black Power (grande líder da Equipe Black Power, que mandava no pedaço), o DJ F-Soul tomou conta da lona com seus preciosos discos de funk, aquecendo o ambiente que, mais tarde, viria a incendiar com tantas ondas sonoras de poder negro. 


Assim que o público entrava no universo contracultural do Circo Voador, ia sendo embalado pelo R&B que vinha da voz brutalmente aveludada da rapper Lauryn Hill, uma mulher negra que nos anos 90 foi considerada “a nova poderosa voz do rap” e que cresceu em uma família apaixonada por rhythm and blues. Naquele momento dava pra sentir o pulsar da infância de Hill, sua mãe ao piano, seu pai a cantar e uma criança sendo empoderada pela música, pelo pulsar. “I need you, baby...” e o charme chamava e a gente ia, também precisávamos dele.

E era chegada a hora das “ladies leave your man at home” e caírem na pista de dança, pois já eram 23:30 da noite e o público estava “jumpin', jumpin'” com a galera da Dança Charme & Cia. Ao som do girl group americano Destiny’s Child (um dos maiores trios musicais de todos os tempos), os circenses faziam seus malabarismos com os pés: direita direita, esquerda esquerda, pra frente, pra trás, pra frente ficou e faz um charme.

Abençoados pela mãe África, a sua filha América do Norte serviu de inspiração para a caçula América Latina, que cresceu e reconheceu o orgulho que era ter a cor preta, o cabelo crespo e a magia negra dos beats, foi assim que a MPBlack se ergueu. E como bons adoradores da música brasileira e afro-americana, não poderia faltar no set-list do DJ Fabiano que mandava no Soul, a canção em reverência a cultura power, “Que Tempo Bom” de Thaíde & DJ Hum, um hino nacional que explodiu em 1996 e que, em pleno 2019, a garotada sabe cantar o refrão de cor e charmeado


Unindo acordes, o baixo e a guitarra faziam os dedos dançarem freneticamente, enquanto as cortinas da lona se curvavam para a abertura que estava por vir: a Conexão funk do Menino Jesus filho da soul music de Japeri. Fundado por Ed Motta (que infelizmente não estava presente) e pelo guitarrista Luis Fernando, inicialmente chamado de Expresso Realengo, que mais tarde foi rebatizado por Conexão Japeri, o grupo que em 1988 lançou seu primeiro disco, "Ed Motta e Conexão Japeri", do qual se destacaram os sucessos "Lady", "Vamos dançar", "Um love" e "Manuel", agora estava no picadeiro do Circo cantando “o paraíso fica aqui”, e a gente não podia negar porque “quando estamos juntos, esquecemos de tudo” da “cidade violenta e sempre tão cruel”, ficamos igual ao Manuel, íamos pro céu cantando em uma só voz. E o coro se soltava nessa balada, caindo numa Dança &m Cia.


De repente, os céus cariocas se abrem e os sons de acordes estridentes dos metais caem sob os Arcos da Lapa, o solo de bateria conhecido como no ''drum break'' se junta nessa mistura e os gritos agudos, certeiros e inconfundíveis do Deus do funk dá as boas vindas ao que está por vir. James Brown é o nome dele, e seu espírito dance free baixa nos músicos da companhia de dança, que trazem em seus movimentos, o legado do criador da batida nervosa seccionada que participava ativamente dos movimentos sociais que defendiam o orgulho e os direitos civis dos negros norte-americanos. Os corpos dançavam e o que fluía deles gritava alto: “I’m black I’m proud”


E o orgulho rolava a solta picadeiro a fora quando o grande mestre de cerimônias da noite chegou, Gabriel Moura, o novo soulman carioca. Herdando o título de Gerson King Combo (um dos expoentes do soul brasileiro e líder do Movimento Black Rio), Moura chegou botando todo mundo para mexer ao som da black music. Cantando seu grande sucesso pela Biscoito Fino, “Quem não se mexer vai dançar”, cai nas graças do público de charmeiros que, sentem em cada pulsação, a potência sonora do filho do subúrbio. Sobrinho do multitalentoso e saudoso Paulo Moura, Gabriel promete “dançar a noite inteira”, na companhia de preciosos convidados que viriam a abrilhantar a madrugada. Estava dado a largado: A 2a edição do Baile Charme Show começou!


Consagrando o palco para as outras atrações que estavam por vim, um dos grandes representantes da soul music abençoou o santuário Voador cantando suas famosas baladas românticas, o majestoso Hyldon. Parceiro inegável de Cassiano e Tim Maia, o baiano que adotou o Rio como sua terra musical, teve a genialidade de trocar o tic tac do relógio pelo compasso swingado do violão e essa troca certeira resultou em seu grande sucesso, “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda (Casinha de sapê)”,  além de “Na Sombra de uma Árvore”, “Acontecimento”, “Sábado e Domingo” e “Vamos passear de bicicleta?”.

Maravicharmosamente As Sublimes subiram ao palco para dar um toque girl power no baile. Pregando a resistência através de suas canções, Isabel Fillardis, Lílian Valeska e Flávia Santana falaram sobre a importância de todos estarem unidos perante o momento atual que vivemos no Brasil e que essa é a hora de realmente ninguém soltar a mão de ninguém e seguirmos, juntos, em uma luta pela igualdade, direitos humanos e respeito. O grupo, que estreou nos anos 90, teve como inspiração o trio estadunidense The Supremes (que levou Diana Ross, Mary Wilson e Florence Ballard às paradas de sucesso nos anos 60), aumentou o grau da lona cantando seu hit de maior sucesso, “Boneca de Fogo”, levando os dançarinos da noite à uma febre atemporal.

As Sublimes não deixaram de homenagear a cantora Deise Cipriano (integrante do conjunto Fat Family que, inspirados em grupos vocais norte-americanos do estilo gospel, dominaram o Brasil com a sincronia de suas vozes graves e agudas enquanto faziam a “dancinha do pescoço”), que veio a falecer no dia 12 de fevereiro de 2019, deixando um legado inegável para a música negra nacional. Além dessa homenagem, as musas da voz transformaram em harmonia o seu luto pelo MC Sapão, funkeiro carioca que se diferenciou por conta de seu vocal melódico, com influências do soul e que veio a nos deixar no dia do evento, 19 de abril de 2019. Como era a noite de celebrar “a batida que na balada é sensação”, este MC foi celebrado com o canto sublime que lhe guiaria aos caminhos dos céus. E saíram do palco honrando o que vieram fazer. Pregaram a resistência da voz negra que ecoa céus e mares, como a de Deise. Pregaram a resistência do funk carioca, que há muitos sofre com o preconceito e a repressão, como MC Sapão. E levantaram os corpos, os punhos, as placas, e gritaram PRESENTE! Marielle também gritou com a gente.


Como falei acima, que a nossa irmã mais velha América do Norte nos serviu de inspiração, nada melhor do que homenagear as origens da black music através do canto de Alma Thomas, a norte-americana que se apaixonou pelas teclas verde e amarelas da nossa aquarela brasileira e reverenciou com seu jazz, a nossa cultura. Entre uma canção e outra, Alma cantou “What's Going On” (Marvin Gaye) e lembrou que as pessoas se iludem achando que esta música fala sobre amor, mas ela é uma canção de protesto, que veio num momento em que Marvin se encontrava desolado com a política de guerras e o sistema separatista do seu país, então o mesmo usou sua poesia cantada para fazer duras críticas ao caos que se instalara. Isso nos fez transitar pelo passado e entender a realidade ao qual estávamos inseridos.


Em participação especial do Afro Jazz de Glaucus Linx, o saxofonista acompanhou o soulman Gabriel Moura em algumas canções, como “Ela Mora Longe”, e fez belíssimos solos durante a madrugada (assista ao vídeo aqui).

E como o rap é compromisso, chegou assim no miudinho o papo reto de Marcelo D2, que naquele embalo ia botando pra quebrar... “Sacudim, sacundá, sacundim, gundim, gundá!”. Saudando o Rei da Pilantragem, D2 fazia um tributo ao cara que tinha o timbre mais surpreendente do Brasil e animava a plateia como nenhum outro, Wilson Simonal era o nosso guia. Mesmo com toda fama e sendo um dos primeiros homens negros chegando ao estrelato arrebatador, Simonal caiu no ostracismo dedo duro que, unicamente era apontado para ele, mas a gente sabe meu Rei, que o buraco era mais embaixo e que a história que a história não conta tem cor. Por isso a gente canta, com “Alegria, Alegria” no peito, o famoso “Nem Vem Que Não Tem”, porque a massa soul sabe que nosso Rei não é o Zunga do cabelo esticado, o nosso é black power e sua voz só nasceu pra cantar. Enquanto isso Cassiano, o Rei dos Bailes e maior ícone do soul brasileiro ao lado do astro-rei Tim Maia, também foram homenageados na noite charmosa, embebecido pelas ondas do rap. E a pilantragem rola a solta!


“Do, do, do, do, do, do, do, do, do...” nesse momento o groove do baixo abala as estruturas do Circo Voador, o mestre Gabriel Moura não consegue se segurar no lugar, os amantes da disco music caem no passinho sincronizado e a explosão chamada Kevin Ndjana tombou tudo ao som de “Uptown Funk!”. O finalista da sétima edição do programa The Voice Brasil mostrou para o que veio, pois além de cantar incrivelmente bem, o cara possui uma gingada e malemolência para o passinho. Fazendo a nave incendiar em plena madrugada interpretando o melhor do funk americano, o brasiliense mostrou que não é só o Rio que tem 40° e sensação térmica de 50°.


Encerrando a noite de participações especiais, Moura convidou seu grande amigo de estrada, o homem da voz de guerreiro, Seu Jorge. Esses dois gigantes da música negra no Brasil são os fundadores do Farofa Carioca, banda que marcou na época os palcos do Brasil e exterior. A dupla é autora de hits como “Amiga da Minha Mulher”, “Burguesinha”, “Felicidade”, “Moro no Brasil”, “Mina do Condomínio”, entre outras. Seu Jorge, que não veio de lá da Capadócia mais é valente que só, levou o público ao delírio com sua presença. Quase que adorado pela multidão, o cantor recebeu todo esse carinho e retribui com sua música, rica em qualidade e amplitude, que ia sendo guiada pelo som da flauta ancestral e caia no grave de suas cordas vocais na canção “Quem Não Quer Sou Eu”. Em um blues carregado de um soul sensual e quase que palpável, Jorge canta a “Coisa Linda” de Vinicius Canturia, declarando sua felicidade em sentir a presença dos amantes da música e dançando junto com eles enquanto tocava a mágica flauta que flutuava em suas mãos encantando a gente. E a essência dos subúrbios cariocas exalava no Circo, mostrando ao mundo o poder descomunal que vem das margens sociais.


A noite não poderia terminar de outra forma e “Olhos Coloridos” (canção que se tornou um hino da MPBlack e eternizada na voz de Sandra de Sá) foi cantada em alto e bom som, ao lado do mestre Macau, compositor da letra que, como “What's Going On” de Marvin Gaye, não é uma música banal e sim de resposta a toda opressão, racismo e preconceito sofrido pelo povo negro (especificamente na época do Movimento Black Rio em plena ditadura) e que precisa ser lembrada até os dias atuais. No livro “1976 – Movimento Black Rio” (que aliás, recomendamos a leitura), de Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octávio Sebadelhe, os autores documentam a real história por detrás desses acordes de “Sarará Crioulo”, leia abaixo um trecho:


“Uma situação parecida, no ano de 1973, teria acontecido com Macau, o célebre compositor do sucesso ‘Olhos Coloridos’, pouco depois de completar a maioridade.

Fui abordado numa exposição de escola que tínhamos ido ver com alguns amigos. Era morador da Cruzada São Sebastião, no Leblon, e fomos ver o evento que acontecia na Lagoa, ao lado do extinto Tivoli Park. Quando um policial pediu para acompanhá-lo. Eu me recusei e perguntei: ‘Por que eu tenho que te acompanhar?’. Mostrei meus documentos da ordem dos músicos e um amigo, o Jamil, que era bombeiro, ainda tentou interceder. O guarda falou: ‘Mas você vai ter que me acompanhar assim mesmo.’. Meu amigo Jamil falou: ‘Vai lá, Macau. Eu fico resolvendo daqui.’.

Quando cheguei no departamento de polícia, um sargento baixinho me disse: ‘Tô te vendo. Tô sabendo de tudo. Você é muito folgado.’. Eu me surpreendi e perguntei: ‘Por que eu sou folgado, meu amigo? Eu não fiz nada.’.

‘Sabe de uma coisa, seu folgado, é porque você mora na Cruzada, eu te conheço de lá. Ali só mora marginal. E outra: esse seu cabelo, essa sua roupa, esses seus olhos, esse seu sorriso. Sabe o que você é? Você é um crioulo muito folgado.’.

Daí eu respondi: ‘Eu não sou crioulo. Eu sou um negro. E, tem mais, o sangue que corre na minha veia, também corre na sua. E sabe o que o senhor é, seu sargento? O senhor é um sarará!’.

Aí, pronto, fui agredido e levado para dentro de um camburão. Fiquei rodando com eles pela cidade enquanto outros rapazes iam sendo jogados para dentro do camburão durante o percurso. O camburão ficou abarrotado, uma coisa horrível.

Já era noite, na delegacia fui jogado numa cela e enquadrado por ‘abuso à autoridade’, vejam vocês. A cela também estava superlotada. Fiquei horas ali, até que finalmente os meus amigos conseguiram me interceptar, pela graça divina.

A minha revolta era indescritível. Cheguei em casa aos prantos. Peguei meu violão e fui pra praia. Foi quando surgiu a inspiração para a música ‘Olhos Coloridos’, desse triste acontecimento e de um momento de absoluta decepção com o sistema e a sociedade.

Olhei para o horizonte e lembrei do meu avô, que, naquela mesma praia do Leblon, ficava assando milho e tocando caxambu, um batuque afro-brasileiro de Minas Gerais, de onde ele veio. ‘Olhos Coloridos’ foi um manifesto pessoal, saiu como um desabafo, com aquela levada que aprendi com meu avô. Afinal, percebi que só consegui contar a minha história com o meu violão: ‘Você ri da minha pele/ Você ri do meu cabelo/ Você ri da minha pele/ Você ri do meu sorriso / A verdade é que você / tem sangue crioulo/ tem cabelo suro/ Sarará Crioulo...’.

O Movimento Black Rio só veio consolidar a minha busca por informação contra o preconceito e afirmação negra.”

A noite acabou em festa, com um corredor de dança charme, onde todos passavam e mandavam seus passinhos para celebrar a importância que o Movimento Black Rio teve para empoderar os seus. E passou o DJ F-Soul, Conexão Japeri, Hyldon, As Sublimes, Kevin Ndjana, Alma Thomas, Glaucus Linx, Marcelo D2, Seu Jorge, Macau, Gabriel Moura, Dança Charme & Cia, os Circenses, o Circo Voador e “Gerson Quincombo mandava mensagens aos seus, Tony Bizarro dizia com razão, vai com Deus, Tim Maia falava que só queria chocolate, Toni Tornado respondia: Pode Crê, Lady Zu avisava, a noite vai chegar, e com Totó inventou o samba soul, Jorge Ben entregava com Cosa Nostra, e ainda tinha o toque dos Originais...” 


E lá em 1996 Thaíde & DJ Hum já mandavam uma letra que representa os amantes dos Bailes Charmes de hoje:

"Mantém a nossa tradição sempre viva.
Mudaram as músicas, mudaram as roupas,
Mas a juventude afro continua muito louca.
Falei do passado e é como se não fosse,
O que eu vejo a mesma determinação no Hip-Hop
Black Power de hoje.

Essa é nossa homenagem, a todos aqueles,
Que fizeram parte ou curtiram Black Power.
Luiz Carlos, Africa São Paulo, Ademir Fórmula 1,
Kaskata's, Circuit Power.
Bossa 1, Super Som 2000, Transa Funk, Princesa Negra,
Cash Box, Musícalia, Galote, Black Music,
Alcir Black Power, e a tantos outros,
Obrigado pela inspiração.
Pode crê, pode crê."

Que noite maravilhosa. Que tempo bom!


Encaminhado por: Texto escrito por Gabriela Rodrigues
Fonte da imagem: fotos Baile Charme de Augusto Cesar | Livro foto de Felipe Ferreira

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