Resenha de Samba

Batuque de Negros e Negras do Braz da Malhada Quer Continuar (Falta Apoio)

segunda, 29 de abril de 2024

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Grupo de Samba Rural centenário de São João do Piauí busca auxílio para manter atividades

Na Malhada, as crianças crescem sambando | Foto: Zanettini Arqueologia

O Batuque de Negros e Negras do Braz da Malhada é um grupo espontâneo de Samba Rural piauiense que leva o nome de seu fundador e existe ao menos desde o início do século 20. O velho Braz antes de se despedir desse plano, chamou seu neto Francisco e lhe pediu para continuar com a cultura de seus ancestrais. Seu Chiquim antes de nos deixar em 2021, repetiu o gesto de seu avô e chamou seu cunhado, Valdomiro, e lhe fez o mesmo pedido. Seu Valdomiro está empenhado em continuar o legado de seus antepassados, mas enfrenta dificuldades devido a falta de apoio para a realização de atividades. A comunidade rural da Malhada pertence ao Território Quilombola Riacho dos Negros no município de São João do Piauí e sua população vive basicamente da agricultura de subsistência e do pequeno criatório de animais.

O saudoso Chiquim contava que há alguns anos ele havia sido contemplado num projeto cultural e empregou todo o dinheiro em oficinas de ensino para as crianças da Comunidade da Malhada: “Não faço nada sem meu grupo, por isso o mais justo era dividir o dinheiro com todo mundo. A forma mais inteligente que encontrei foi promover encontros na Malhada para ensinar o Batuque às crianças” (finado Seu Chiquim, Sambista).

Seu Chiquim do Batuque do Braz observado por Dona Neta: um dos maiores sambistas que o Piauí já teve | Foto: Zanettini Arqueologia

Graças a esse gesto de Seu Chiquim, hoje o Batuque do Braz conta com jovens que se interessam vivamente pelo Samba. Porém, Seu Valdomiro relata que após a passagem de Seu Chiquim o grupo não encontrou mais apoio e suas atividades diminuíram, o que o faz sentir saudades daquela época:
“Com esse dinheiro ele (Chiquim) comprava refrigerante, pipoca e agradava a criançada, a juventude. Foi uma fase que o Batuque do Velho Braz teve vivo, teve bem animado. Tinha apresentação, ensaio do grupo, era bem empolgado. Com certeza se a gente tivesse esse meio, uma verba, uma ajuda de custo que a gente pudesse tá fazendo esse tipo de coisa, pelo menos pra juventude, a criançada a gente tá agradando com qualquer coisa, com certeza estaria mais presente, estaria mais viva a cultura. A gente tem vontade de tá trazendo as pessoas, animando. Às vezes quando eu tenho a condição eu arco dos meus custos mesmo, eu nem tenho, né? Mas do pouco que eu tenho eu costumo fazer as festas aqui. Batuque, Reis, 9 noites de novena, do que eu tenho.” (Seu Valdomiro, Líder do Batuque do Braz).

Dona Neta, viúva de Seu Chiquim e uma das principais sambistas do Batuque do Bráz da Malhada atualmente viveu aquele período e conta detalhes:
“Foi muito bom nessa época, nós ficamos 6 meses dando aula de Batuque lá na Malhada, os alunos que participaram hoje entendem tudo do Batuque. E hoje o que falta mesmo é o financeiro, né? Pra poder a gente ter aquela força, porque não tem transporte, não tem… até os figurinos já tá tudo véim, tudo ruinzinho, não deu pra conseguir mais nada. E é isso que tá faltando, é dinheiro, porque hoje tudo só vai através do dinheiro. Porque primeiro do que tudo precisa dos figurinos, de carro e é assim, é isso” (Dona Neta, Sambista do Batuque do Bráz).

Adolescentes e crianças se apresentam no grupo do Batuque do Bráz | Foto: Zanettini Arqueologia

Uma possível saída para a continuidade do Batuque do Braz da Malhada é a bolsa financeira prevista no edital de Patrimônio Vivo do Piauí. O Batuque do Braz teve documentação habilitada para concorrer ao Chamamento “Mestre Gregorinho” para inscrição no Registro do Patrimônio Vivo do Estado do Piauí edição 2023. Seu Valdomiro está ansioso pelo resultado: “Com certeza se a gente tivesse essa facilidade de ter uma ajuda de custo era muito bom pra gente. Era muito bom!”.

Na mesma região, outros 3 grupos de Batuque já são beneficiados com essa bolsa financeira e mantêm suas atividades de forma permanente: Batuque do Curral Velho (São João do Piauí); Batuque da Volta do Campo Grande e Samba de Cumbuca de Salinas (Campinas do Piauí).

O Batuque do Braz foi retratado nos documentários “Batuques em São João do Piauí” (2019) e “Seu Chiquim do Batuque do Braz da Malhada” (2021). 

O saudoso Chiquim do Batuque do Bráz com Dona Neta ao fundo | Foto: Francisca Sousa

Além disso, o Batuque do Bráz tem merecido estudos publicados em livros, como “Territórios e Memórias - Diálogos sobre os Batuques em São João do Piauí”, da antropóloga Ariane Couto Costa e do sociólogo Fábio Guaraldo Almeida. Como extensão desse trabalho, Ariane desenvolveu na Universidade de São Paulo (USP) a tese de mestrado “Arrocha pra cima!: perspectivas sobre cultura no Batuque quilombola de São João do Piauí”. Segundo a antropóloga, a importância do grupo para a Comunidade da Malhada extrapola motivações apenas culturais:
“O Batuque do Bráz da Malhada desde as gerações mais antigas é um círculo de socialização das crianças, das pessoas e dos jovens da comunidade, ele é o lugar onde se passam os valores da comunidade, como respeito aos mais velhos, de aprendizado, a vista e a lida com o trabalho. É através do Batuque que é passado o valor da alegria, da efemeridade da vida, da importância de se aproveitar os bons momentos numa vida que também é marcada por muito sofrimento”.
“O mais gostoso é que no Batuque dos Negros e Negras do Bráz da Malhada, quando alguém começa a puxar um batuque, em pouco tempo se junta toda a comunidade em torno e rapidamente você vê várias pessoas batendo palma, cantando, se emocionando. Então o Batuque do Bráz é uma celebração muito bonita e a forma como ele ocorre na comunidade da Malhada é muito especial pra continuidade da comunidade, pra celebração dos valores mais ancestrais dessa comunidade, pra celebração dos antepassados, pra celebração da vida e pra celebração dos aprendizados e do futuro dessa comunidade e dessas pessoas” (Ariane Couto Costa, Antropóloga).

Fora isso, Ariane aponta um detalhe fundamental para a continuação de uma expressão cultural, a renovação geracional:
“Nas festas do Batuque do Bráz as crianças tão sempre presentes, tão sempre junto, elas gostam de cantar e dançar junto e na geração atual as crianças da Malhada já se entendem como herdeiras do Batuque, elas já entendem que elas são as futuras cantadeiras e dançadeiras. Elas conseguem reconhecer nos seus parentes as figuras de liderança desse batuque e elas se orgulham de fazer parte desse batuque. E as gerações dos adultos hoje, dos idosos hoje no Batuque do Bráz também têm trabalhado através de projetos que infelizmente não conseguem ser continuados pra que essas crianças também possam ter espaço”
“Então é muito bonito ver como esses pequenos vão aprendendo e como eles vão criando laços de memória e de afeto através do Batuque do Bráz com esses mais velhos, o quanto esses laços geracionais são reforçados através do Batuque, o quanto a memória e a história dessas crianças é recheada com essas histórias e memórias dos mais velhos, das gerações anteriores e de gerações incontáveis antes dela, tudo isso repassado através do Batuque do Bráz” (Ariane Couto Costa, Antropóloga).

Mulheres têm papel fundamental no Batuque do Braz | Foto: Zanettini Arqueologia


Seu Valdomiro confessa que a falta de apoio vem fazendo com que cada vez mais esses encontros diminuam. Ricardo Augusto Pereira, historiador e coordenador pelo IPHAN do Processo de Registro para que os Batuques do Piauí sejam considerados Patrimônio Cultural Brasileiro fala sobre a importância de ações de salvaguarda para a continuidade de bens culturais como o Batuque do Braz:

 “Ali na região das comunidades negras e quilombolas de São João do Piauí tem batuques muito antigos, como o Batuque do Braz, que devem integrar novas pesquisas que o IPHAN irá realizar pra inclusão de grupos de comunidades na salvaguarda. O objetivo principal da salvaguarda é a valorização dos Batuques. De que forma? A partir do diálogo com as comunidades, elas informam o que pretendem, que ações podem ser desenvolvidas pra valorização desses batuques. E geralmente tem ações ou políticas que cabem também a outros órgãos, a gente tenta fazer essa articulação com outros órgãos” (Ricardo Augusto, Historiador do IPHAN-PI).


Fundador do Instituto Glória Ao Samba, entidade sem fins lucrativos da cidade de São Paulo que tem como finalidade realizar diversos tipos de ações em prol do Samba, Rafael Lo Ré dimensiona a importância da existência do Batuque do Bráz:

“Hoje no Brasil a gente não encontra mais um elo de ligação com as manifestações culturais que aconteciam no passado. Então, o Batuque de Negros e Negras do Bráz da Malhada tem que ser valorizado, respeitado e apoiado, pra que a gente possa propagar para as futuras gerações a nossa cultura, a cultura do povo brasileiro, a cultura do Samba fora do eixo Rio-São Paulo em cada região, da forma em que ela é manifestada” (Rafael Lo Ré, Sambista e fundador do Instituto Glória Ao Samba).


Vez por outra o Batuque do Bráz é chamado para realizar representações. Mas aí a dificuldade já é outra, como narra Seu Valdomiro: “O Batuque sendo só uma apresentação de 20 minutos, é muito bom. Difícil é acontecer dessa forma, porque o pessoal que já gosta da cultura não se conforma em brincar só 20 minutos. E aí quando começa, não tem hora pra acabar. Quando vai se dar conta, já é de manhã”. 


Sem o apoio do poder público, o Batuque do Braz vem resistindo com todas as suas forças. Imaginem quando começarem a ajudar? Os pés vão pisar firmes no terreiro, a poeira do terreiro vai subir, os tambores vão troar e a barra do dia vai apontar, sem que ninguém se lembre da dura lida na roça ou do sol quente que castiga o dia a dia. 

Toda essa situação vivida hoje pelo Batuque de Negros e Negras do Bráz da Malhada fica muito bem ilustrada numa de suas cantigas mais festejadas:


Sia Dona eu te peço

Pelo amor de Deus

Quem compra na venda

Quem paga sô eu!

Sô eu! sô eu!

Sia Dona, sô eu!


O Batuque de Negros e Negras do Braz da Malhada quer continuar. Falta apoio. 


Seu Valdomiro comanda o Batuque em noite animada | Foto: Zanettini Arqueologia



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