Amigo ao Peito

Caique Botkay, que foi embora cedo demais

quarta, 26 de junho de 2019

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Senhores, Caique Botkay era um canalha. Eu falo e provo: fomos, eu e ele, participar de um congresso cultural numa cidade do interior. Naquela época , ele era diretor do Instituto de Arte e Cultura da Universidade Gama Filho e eu dava aula de construção de instrumentos lá. Um aluno estava na organização do evento e nos convidou. Fomos.

Chegamos. Abertura dos trabalhos, começam a chamar nomes para subir ao palco e compor a mesa. O tal do meu aluno, que organizava a coisa, de longe me mandou um olhar de deboche. Achei estranho. Fomos, eu e Caíque, convidados a subir ao palco. Foi lindo ver meu amigo ali, comunista das antigas, sentado entre o prefeito, vereadores, secretários, todos do extinto PFL, o partido mais à direita que havia. Nisso, o locutor convida o prefeito a dizer algumas palavras. Ele as disse, e passou o microfone para o vereador anunciado pelo locutor, que foi anunciando todos que estavam à mesa. Ué, ia ter que fazer discurso? Olhei para meu aluno e sua cara sádica confirmou. Sim, discurso, e de improviso. O moleque queria nos deixar em situação desconfortável de surpresa. Mas ri por dentro. Desde que comecei a dar cursos e palestras, tenho um discurso sobre luteria pronto, que nem aqueles meninos guia em Olinda, tudo decoradinho, já tinha feito diversas vezes na própria Gama Filho, fiquei feliz: eu ia rir por último! Cheguei a ficar feliz pela coisa. Tinha uma namorada recente na plateia, ia abafar! Já ia recitando mentalmente : Durante as cruzadas, os cavaleiros trouxeram para a Europa um instrumento diferente, ...

Entregaram o microfone para o canalha, digo, Caíque, que me precederia, e ele:

- Durante as cruzadas, os cavaleiros trouxeram para a Europa um instrumento diferente, ...

e recitou TODO o meu discurso!!!!!! Me entregou o microfone com um sorriso cínico e me deixou ali, diante de umas 2 mil pessoas e uma namorada nova, sem saber o que dizer.

Creio que deixei provado meu ponto. 

Além de canalha, CaiqueCarlos Henrique de Sorocaba Botkay, sendo o Sorocaba resquício da antepassada de quem mais se orgulhava, a Marquesa do mesmo nome, irmã da Domitila, Marquesa de Santos, ambas amantes de Don Pedro I - era compositor e violonista, de teatro e cinema. Ganhou prêmios Moliére, Shell, Mambembe, era um craque no seu mister. Diretor, ator, mas sobretudo músico. Canalha, mas craque. 

Cascão sempre era o escolhido por Cebolinha em seus planos infalíveis para derrotar a Mônica. Eu fui o Cascão do Caíque Botkay em seus planos infalíveis para derrotar a burrice reinante no país. Já o conheci assim, num projeto de memória da música; depois, fui seu comandado no projeto pioneiro de um curso de construção de instrumentos já citado. Suas reuniões de trabalho com a equipe eram as melhores: duravam minutos, tudo resolvido, sem conversa fiada. Terminada, ele dizia, grave:

-Ricardo Dias, por gentileza, fique mais um pouco, temos assuntos a tratar. 

Quando todos saíam, ele me contava alguma nova descoberta, falava do nosso Fluminense ou alguma invenção, como o que faria se ganhasse na loteria. Iríamos ambos, paletó e gravata, no gabinete do chanceler da universidade, e antes que começasse algum assunto, ele apontaria para a gravata do magnífico e perguntaria:

-O que é isso?

Quando este baixasse o rosto para olhar, ele correria com o dedo de baixo para cima em seu rosto fazendo: trúúúú!!!!!

Nos viraríamos e sairíamos, circunspectos. Canalha, mil vezes canalha!

Nessa universidade a coisa era complicada. Ambos de esquerda, meio deslocados, o ambiente era meio parecido com a Brasilia de hoje. Havia frases do fundador da instituição espalhadas pelo campus, retratos, uma coisa meio sinistra. E eu, à falta de coisa melhor para fazer, decorava as frases. Um dia, fui convocado por ele a fazer número numa reunião interdepartamental, coisa séria. Enorme mesa de jacarandá, senhoras de pince nez (metaforicamente), um horror. Eu, ele e Cely Bianchi, então seu braço direito. A reunião foi das coisas mais tediosas a que jamais assisti. A coordenadora era o que chamavam antigamente de espiroqueta, um pé no saco monumental. Não aguentei o tédio e resolvi participar:

-O que a senhora fala me lembra uma frase que me toca muito: “O país que precisamos construir, com oportunidades para todos, depende de nossos esforços no campo da educação”. Ministro Gonzaga da Gama Filho.

Ela quase chorou. Abriu os braços, orgásmica:

-Meu filho! Você entendeu tudo! É isso mesmo!

Seu entusiasmo foi providencial, pois não viu Cely, que bebia um copo d’água, espirrar água pelas orelhas segurando o riso, e o bico na canela que Caíque me deu. Até hoje, quando muda o tempo, dói. Canalha.

Ao longo da vida nos encontrávamos para mais um de seus planos infalíveis, não havia um único momento em que sua cabeça não fervilhasse de ideias. Não para lucrar, mas para mudar as coisas. Era péssimo em ganhar dinheiro, mas gastava com bastante talento. Ganhou uma comenda, foi do Conselho de Cultura, sempre tentando alguma coisa nova. Ficou doente, coisa grave, no sangue. Demos boas risadas com meus métodos de contrabandear biscoito para ele no hospital: verão, eu chegava de casaco fechado, inchado. De tanto tomar sangue se autointitulava vampiro, e culpava os gens húngaros, certamente havia algum fator transilvânico ali. 

A última notícia dele foi uma mensagem, em que dizia que estava feliz por termos estado de novo juntos na mesma luta, contra a ignorância. E a melhor homenagem que se fará a esse meu amigo que foi embora tão cedo será essa, lutar contra a ignorância, contra a estupidez, contra a burrice. Falando bobagem, rindo, sacaneando toda gota de asnice que nos pingar em cima. 

Eles que se cuidem, lá de cima terão um vigia atento e sacana. Vai em paz, Comendador Sorocaba, vai em paz, irmão. Um canalha, nos deixou aqui cedo demais.

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