Tema do Mês

Carmen Costa: o centenário de um patrimônio cultural do Brasil

quarta, 15 de julho de 2020

Compartilhar:

Em meados de 2003, prestes a completar seus 83 anos, Carmen Costa se encontrou com o então ministro da Cultura, Gilberto Gil, e não hesitou em lhe fazer um pedido: queria ser tombada como patrimônio artístico do Brasil. O pedido, claro, veio em forma de canção. Provando que esse já era um desejo antigo, Carmen cantou a música “Tombamento”, gravada por ela ainda em 1996:

Eu sou a raça,sou mistura
Sou aquela criatura
Que o tempo vai tombar
Sei que não serei a derradeira
Mas quero ser a primeira
Para a História conservar…

Por conta desse gesto, pouco depois ela foi homenageada pelo Museu da República e pelo então vereador do Município do Rio de Janeiro, Edson Santos, com um tombamento simbólico como patrimônio cultural carioca. 

Ao se analisar em retrospecto a trajetória e o legado de Carmen Costa, só nos resta uma constatação a fazer: a homenagem foi mais do que justa. 

Foto: Reprodução. 

A construção do patrimônio

Nascida Carmelita Madriaga, Carmen Costa iniciou a carreira artística em meados da década de 1930, quando formou dupla com o cantor e compositor Henrique Felipe da Costa, o Henricão. Juntos, chegaram a gravar alguns sucessos, como “Onde está o dinheiro?” e “Dance mais um bocado”. 

A dupla durou até 1942. Foi em abril daquele ano que Carmen se lançou em carreira solo, com um 78 rotações que já revelou dois sucessos inesquecíveis da música brasileira: “Está chegando a hora”, versão de Henricão e Rubens Campos do hit mexicano “Cielito lindo”, e “Só vendo que beleza”, da mesma dupla, cantada e conhecida até hoje como “Marambaia”: “Eu tenho uma casinha lá na Marambaia/ Fica na beira da praia, só vendo que beleza…”. 

Entre sambas e sambas-canção

Foi, contudo, a partir da década de 1950 que Carmen Costa atingiu o apogeu de sua produção artística. Nessa época, ela mudou o estilo de interpretação, passando a cantar de uma forma mais coloquial, o que lhe conferiu uma aura moderna e original. 

Desse período em diante, passou a dividir-se, com igual sucesso, entre sambas, marchinhas de carnaval e sambas-canção de “meio de ano”, como se dizia. Dos hits carnavalescos, por exemplos, podemos citar alguns clássicos inesquecíveis, como a “Marcha do Cordão do Bola Preta” (Nelson Barbosa e Vicente Paiva), “Se eu morrer amanhã” (Garcia Júnior e Jorge Martins), “Tem nego bebo aí” (Mirabeau e Airton Amorim) e, claro, “Cachaça” (Lúcio de Castro, Heber Lobato, Marinósio Filho e Mirabeau). Sim, essa mesmo: “Você pensa que cachaça é água?/ Cachaça não é água, não…”. 

Esse período de sua trajetória foi também marcado pela relação com o compositor Mirabeau, de quem se tornou a principal intérprete. Dele, gravou sucessos fulgurantes, como o dramático samba-canção “Quase” (“Foi pensando em você/ Que eu escrevi esta triste canção/ Foi pensando em você/ Que é meu tormento e é minha paixão”) e o samba “Obsessão”, posteriormente regravado com sucesso por Clara Nunes: “Já não é amor/ Já não é paixão/ O que eu sinto por você/ É obsessão”. 

A relação com Mirabeau não foi puramente artística ou profissional. Embora ele já fosse casado, os dois mantiveram uma relação amorosa que durou cerca de cinco anos e gerou uma filha, Silezia Madriaga

A experiência de ser “a outra” na vida de um homem, em uma época marcadamente moralista e machista, motivou Carmen a gravar uma das músicas mais ousadas do período. Trata-se do samba-canção explicitamente autobiográfico “Eu sou a outra”, composta por Ricardo Galeno e lançado em 1953.

Ele é casado
E e eu sou a outra na vida dele
Que vive qual uma brasa
Por lhe faltar tudo em casa
Ele é casado
E eu sou a outra que o mundo difama
Que a vida, ingrata, maltrata
E, sem dó, cobre de lama…” 

A letra dessa música foi um choque para a época por seu tom direto e sincero, escancarando aquela realidade sem nem dourar a pílula. Os últimos versos, inclusive, estão longe de apresentar uma conclusão moralista sobre o assunto e reforçam o caráter contestador e libertário dessa música que acabou se tornando um dos grandes sucessos da carreira de Carmen: “Não tenho nome, trago o coração ferido/ Mas tenho muito mais classe/ Do que quem não soube prender o marido”. 


Do cabaré à galeria do amor

Embora os grandes sucessos de Carmen Costa tenham sido gravados na era dos 78 rpm, ela também gravou alguns LPs interessantes. Fiquemos com apenas dois exemplos. 

O primeiro é o conceitual álbum homônimo de 1980, no qual ela reuniu apenas canções que abordam a temática da prostituição, como “Dama do cabaré” (Noel Rosa), “Garoto de aluguel” (Zé Ramalho), “Sob medida” (Chico Buarque)  e outras . Mais uma escolha ousada da intérprete que obteve resultado positivo.

O outro, lançado um ano depois, em 1981, é o registro ao vivo do show “Na galeria do amor”, espetáculo realizado com Agnaldo Timóteo e dirigido por Hermínio Bello de Carvalho dentro do projeto “Seis e Meia”

Pautado por uma série de pot-pourris, o repertório reúne sucessos dela (“Obsessão”, “Quase”, “Está chegando a hora”) e dele (“Amor proibido”, “Ninguém é de ninguém”), além de canções de Gilberto Gil, Lupicínio Rodrigues, Cartola e outros. 

O encontro é também simbólico por uma inusitada coincidência nas trajetórias de Carmen e Timóteo: ambos trabalharam para grandes estrelas da música popular brasileira antes de se tornarem artistas. Agnaldo Timóteo foi motorista da diva Angela Maria, a eterna “Rainha do Rádio”. Já Carmen, ainda aos quinze anos, trabalhou como empregada doméstica de Francisco Alves, o “Rei da Voz”. Foi ele, inclusive, quem a incentivou a seguir carreira de cantora. 

 Imagens: IMMuB/Reprodução. 

Um patrimônio cultural faz 100 anos

Existem ainda outras curiosidades da carreira de Carmen Costa que são pouco difundidas. Ela, por exemplo, esteve presente no histórico concerto da Bossa Nova no Carnegie Hall. Embora não estivesse diretamente ligada àquele movimento musical, se apresentou no mais prestigiado palco de Nova York acompanhada do conjunto de Bola Sete

Além disso, é sabido que Carmen foi também compositora, e chegou a criar diversas canções com o pseudônimo Don Madrid, gravado inclusive por outras intérpretes, como Aracy de Almeida (“Mais vale um gosto”) e Elizeth Cardoso (“O amor é tudo”). 

No último dia 5 de julho, celebramos o centenário de Carmen Costa. Apesar do enorme legado que ela deixou para a memória musical brasileira, como uma de nossas mais importantes intérpretes, a cantora merece ainda mais destaque. Que se ouçam seus discos e se celebre a sua contribuição para a cultura brasileira! 

E que a gente tire o mês, o ano inteiro, para escutar Carmen Costa. Afinal, não é sempre que um patrimônio cultural do país completa 100 anos. 

Foto: Reprodução. 

Texto por: Tito Guedes 

Comentários

Divulgue seu lançamento