Cássia Eller, 20 anos de saudade: o legado de uma voz flamejante
por Vinícius Rangel Bertho da Silva
“Eu poderia ser um padre ou um dentista
Um arquiteto, um deputado ou jornalista
Eu poderia ser ator e me dar bem
Ser um poeta que escreve versos como ninguém
Eu poderia ser um general da banda
Uma modelo, um herói da propaganda
Eu poderia ser escravo do trabalho
Ser um banqueiro, um estilista do baralho
E não há nenhuma hipótese
Que eu não considere, mas
O que eu queria mesmo ser
É a Cássia Eller”
(Péricles Cavalcanti, 1998)
Quando Cássia Eller surgiu para os olhos do público no ano de 1990, não havia nenhuma cantora jovem em atividade que se assemelhasse a ela naquele momento. Marisa Monte, Adriana Calcanhotto e Zélia Duncan, por exemplo, eram moças pacatas e até de fino trato se comparadas com a voz e o visual de Cássia, dona de uma voz grave e potente, sempre trajando roupas bem despojadas, além de ser radicalmente avessa a figurinos sofisticados ou maquiagens. Sempre disposta a romper barreiras entre masculino e feminino, tão bem delimitadas pelas cantoras da geração anterior à sua (a da turma da chamada “MPB”).
No início da década de 1990, a palavra de ordem na música brasileira era diversidade. Graças ao sucesso improvável do álbum de estreia de Marisa Monte, que continha um repertório que ia de Titãs e Mutantes a Candeia e Tim Maia, as gravadoras passaram a investir em cantoras cujo repertório fosse o mais diverso possível. Por outro lado, o Brasil se via diante de mais uma crise econômica generalizada que se iniciava com o primeiro governo eleito democraticamente, fazendo com que os lançamentos musicais não tivessem o mesmo luxo e requinte de décadas anteriores.
Sendo assim, Cássia Eller (1990), primeiro álbum da artista, confirma o seguinte fato: trata-se de um álbum muito além de seu tempo. A pluralidade se fez presente no disco de Cássia, que reuniu a fina flor da produção musical da vanguarda paulistana (Itamar Assumpção, Mário Manga, Bocato, Arrigo Barnabé) e de expoentes do Rock da sua geração (Cazuza, Frejat, Renato Russo e The Beatles) com uma sonoridade voltada para o Rock, Blues, Folk e Jazz, com destaque para “Rubens” (Mário Manga) e a bela releitura de “Por Enquanto” – uma das melhores canções do repertório da Legião Urbana – em formato de voz e violão e com um incidental no qual Cássia juntava a célebre canção de Renato Russo com alguns versos de “I’ve Got a Feeling” (John Lennon & Paul McCartney), do último trabalho de estúdio dos Beatles. Apesar do sucesso relativo do disco e do talento da cantora que estreava naquele momento, alguns setores da crítica especializada fizeram avaliações injustas da estreia de Cássia Eller em disco, classificando-a como uma versão mais agressiva e descontrolada de sua colega Marisa Monte.
Apesar da incompreensão da crítica musical na época, Cássia Eller saiu em turnê nacional com um time de músicos virtuosos do naipe de Victor Biglione (guitarra) e Jorge Helder (baixo), rendendo um programa especial para a extinta TV Manchete. O encontro entre Cássia e Biglione rendeu um álbum gravado com clássicos imortais do Blues como “I Ain’t Superstitious” (Willie Dixon), cuja gravação do Jeff Beck Group (com um jovem Rod Stewart nos vocais) é simplesmente antológica. Registros no YouTube comprovam que a releitura de Cássia conseguia ser potente quanto às interpretações de Howlin’ Wolf ou de Stewart. Como a gravadora PolyGram não se interessou pelo projeto, o disco foi arquivado por achar que o repertório não era atraente para o mercado da época. Uma pena que esse trabalho siga inédito até dezembro de 2021, pois muitos fãs gostariam de conhecer as gravações daquele encontro.
Como consequência, o segundo álbum de Cássia Eller foi norteado por um repertório pouco comercial. O Marginal (1992) é ainda mais radical do que o seu antecessor, visto que seu repertório não traz nenhum sucesso moldado para os ouvidos atentos às ondas radiofônicas. Canções dos “malditos” Luiz Melodia, Arrigo Barnabé, Hermelino Neder, Mário Manga e Itamar Assumpção se somavam com duas regravações de Jimi Hendrix e criações de Beto Guedes, Márcio Borges, Rita Lee e Lúcia Turnbull. O resultado final é um trabalho cru, intenso, diferente de todas as cantoras brasileiras que produziam naquele período, tornando-se o disco menos vendido de toda a carreira de Cássia.
O contrato de Cássia Eller com a gravadora PolyGram previa três discos de estúdio e a artista dependia do sucesso de seu terceiro disco nas paradas de sucesso para restaurar a própria confiança, além de sua credibilidade perante os executivos da indústria fonográfica. Decepcionada com o sucesso comercial limitado de seus primeiros discos, Cássia estava determinada a pedir a quebra de seu contrato. Graças aos esforços do experiente produtor Guto Graça Mello, o álbum Cássia Eller (1994) foi o primeiro disco da artista a fazer sucesso por todo o Brasil. Para dar início a uma nova fase em sua carreira, a imagem de artista foi suavizada: seus cabelos ficaram mais curtos, com fios menos rebeldes, seu figurino nos videoclipes se tornou um pouco mais feminino e o repertório ficou com um sotaque um pouco mais “brasileiro” – autores da vanguarda paulistana deram lugar a compositores mais “radiofônicos” como Herbert Vianna, Cazuza & Frejat, Raul Seixas e Renato Russo. Outro elemento fundamental para o sucesso desse trabalho foi a banda que acompanhou a cantora era composta de músicos de estúdio bastante competentes: Paulo Rafael (guitarra), Márcio Lomiranda (teclados), Fernando Nunes (baixo), Cesinha (bateria), além da participação especial do experiente guitarrista Wander Taffo em duas faixas do álbum.
O maior sucesso do terceiro álbum de Cássia Eller foi “Malandragem”, canção inédita da parceria de Cazuza e Roberto Frejat. Composta pela dupla para ngela Ro Ro em 1988, a canção tinha sido rejeitada pela intérprete de “Só Nos Resta Viver” por ser “biográfica demais” para o gosto de Ro Ro. Com isso, Cássia teve a sorte não apenas de gravar uma obra inédita de Cazuza quatro anos após a morte do ex-vocalista do Barão Vermelho, como também emplacou um dos maiores sucessos de toda a sua carreira e fez com que essa canção se tornasse a sua marca registrada. Outras canções que abrilhantaram o disco Cássia Eller foram “E.C.T.” (parceria inédita de Nando Reis, Marisa Monte e Carlinhos Brown) e “1.º de Julho”, canção que Renato Russo fez em homenagem à Cássia, que tinha dado luz a seu único filho, Chicão, em 1993. Não menos importantes são as releituras que a artista fez para clássicos da música brasileira como “Nós” (Tião Carvalho), “Na Cadência do Samba” (Matildes Alves, Ataulfo Alves & Paulo Gesta), “Pétala” (Djavan), “Metrô Linha 743” (Raul Seixas), “Coroné Antônio Bento” (Luiz Wanderley & João do Vale) e “Lanterna dos Afogados” (Herbert Vianna). Graças ao seu terceiro trabalho de estúdio, Cássia diversificou ainda mais o seu som - ao trazer samba e baião para o seu repertório -, como também se tornou um nome conhecido nacionalmente.
Na esteira do sucesso de seu terceiro disco, Cássia Eller decidiu seguir para a estrada. Acompanhada apenas de dois músicos (Walter Villaça e Luciano Maurício), a artista montou o show Violões, no qual interpretou várias canções de seu repertório em formato de “voz e violão”. Alguns momentos desse show foram reunidos em Cássia Eller Ao Vivo (1996) destacando algumas canções inéditas na voz da artista como “Nós” (Tião Carvalho), “Eu Sou Neguinha” (Caetano Veloso), “Nenhum Roberto” (Nando Reis) e “Não Amo Ninguém” (Frejat, Ezequiel Neves & Cazuza). O resultado final desse trabalho traz uma Cássia desplugada (vivíamos o auge do sucesso da série MTV Unplugged no meio musical) um pouco mais leve em relação aos trabalhos anteriores, porém com a intensidade que sempre lhe foi peculiar.
Graças à direção artística e a produção do poeta e agitador cultural Waly Salomão, Cássia Eller embarcou em seu projeto mais ousado de sua carreira até então: um trabalho no qual cantaria apenas as canções de Cazuza, cujo repertório ela sempre interpretou com bastante naturalidade. Veneno AntiMonotonia (1997), quarto trabalho de estúdio da artista, faz um belo apanhado da obra de um dos cantores e compositores mais talentosos de nossa música. A rebeldia de Cazuza, seja à frente do Barão Vermelho, seja à frente de sua fulgurante carreira solo, foi muito bem retratada no álbum: Cássia compreendeu algumas sutilezas bem peculiares desse cancioneiro e soube dosar muito bem leveza e agressividade em gravações como “Brasil” (Cazuza, George Israel & Nilo Romero), “Todo Amor Que Houver Nessa Vida” (Frejat & Cazuza) e “Obrigado (Por Ter se Mandado)” (Zé Luís & Cazuza). Veneno Vivo (1998) reúne os melhores momentos do espetáculo baseado no repertório do disco e continha criações de outros autores como Rita Lee (“Todas as Mulheres do Mundo”), Luiz Melodia (“Farrapo Humano”) Renato Russo (“Geração Coca-Cola”), Lobão e Bernardo Vilhena (Vida Bandida”) e uma belíssima homenagem de Péricles Cavalcanti para a eterna intérprete de “Malandragem” (“Eu Queria Ser Cássia Eller”). Em abril de 1998, Cássia chegou a tocar como número de abertura da turnê Bridges to Babylon, que trouxe os Rolling Stones pela segunda vez ao Brasil.
Apesar de ter se revelado uma intérprete bastante versátil e intensa até então, Cássia Eller sempre deixou que o seu lado mais agressivo se sobressaísse quando estava em cena justamente para contrastar com a sua enorme timidez. Todavia, havia uma certa cobrança para que ela começasse a adotar um tom mais suave nas suas gravações e uma delas foi muito especial: a de seu filho Chicão, admirador da voz de Marisa Monte. O menino de seis anos perguntou para a mãe porque ela gritava tanto e não cantava de forma mais suave como a colega de profissão. Graças à intervenção do menino, Cássia fez a guinada mais radical de toda a sua discografia: investiu em um visual um pouco mais andrógino - com direito a apliques com mechas de cabelos longos que foram justapostas ao cabelo cortado à maquina - e em interpretações mais suaves de seu repertório. Recrutou o cantor e compositor Nando Reis e o músico Luiz Brasil para produzir o seu sétimo álbum, Com Você… Meu Mundo Ficaria Completo (1999), último disco de estúdio que a artista gravou em vida.
A proposta inicial de Cássia era de que Com Você… reunisse apenas canções da lavra de Nando Reis. Porém, o ex-Titã conseguiu convencer a artista de que outros compositores fizessem parte do repertório de forma que ela pudesse expor toda a sua versatilidade como intérprete. Nando contribuiu com ? do disco por meio das canções “O Segundo Sol”, “Meu Mundo Ficaria Completo (Com Você)”, “Infernal” e “As Coisas Tão Mais Lindas”. A lista dos demais autores que contribuíram com suas criações para esse trabalho é simplesmente invejável: Caetano Veloso (“Gatas Extraordinárias”), Gilberto Gil e Bené Fontelles (“Pedra Gigante”), Carlinhos Brown (“Mapa do Meu Nada”), Itamar Assumpção (“Aprendiz de Feiticeiro”), Luiz Melodia & Renato Piau (“Esse Filme Eu Já Vi”) e Marisa Monte (“Um Branco, Um Xis, Um Zero” - parceria com Arnaldo Antunes e Pepeu Gomes - e a belíssima “Palavras ao Vento” - parceria com Moraes Moreira). Sem perder o tom visceral de seu canto, Cássia Eller entrou de vez para o primeiro time de intérpretes da música brasileira com o seu maior sucesso comercial ao vender mais de 300 mil cópia de Com Você…, feito extremamente merecido para uma artista que era incompreendida por parte da crítica e do público.
O sucesso trouxe uma visibilidade que trazia não só o reconhecimento do público, como também o desconforto de Cássia com as agruras de se tornar uma celebridade. Para uma mulher que era, ao mesmo tempo, dona de uma timidez desconcertante e de uma ousadia gigantesca ao não esconder quem sempre foi: uma mulher bissexual, mãe de um menino e que vivia há anos em um relacionamento estável com Maria Eugênia, sua companheira de décadas. Em uma época na qual o Brasil engatinhava no reconhecimento de direitos da população LGBTQIA+, a breve vida de Cássia Eller serviu de referência para que outros casais não tivessem pudor de declarar publicamente o sentimento por quem amavam. Além disso, a fama fez com que a artista seguisse em uma rotina extenuante de apresentações ao vivo. Ela estava no topo de sua carreira, porém notava-se uma exaustão que traria resultados fatais para a artista em pouco tempo.
No início de 2001, Cássia Eller se apresentou para um número de quase 200 mil pessoas na terceira edição do Rock in Rio, ao lado de nomes importantes da cena nacional e internacional como Barão Vermelho, Carlinhos Brown, Fernanda Abreu, Moraes Moreira, Neil Young, Sheryl Crow, R.E.M. e Guns ‘n’ Roses. Seu cover para “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana, é um dos melhores momentos de toda a sua carreira e está na memória afetiva de todos que acompanharam aquele show in loco ou em casa. Meses depois, a MTV Brasil a convidou para gravar um especial da série Acústico MTV, que já tinha eternizado em áudio e vídeo apresentações memoráveis de Gilberto Gil, Rita Lee, Gal Costa e Titãs. O Acústico MTV: Cássia Eller (2001) fez ainda mais sucesso que o seu álbum anterior e chegou a vender, na época, mais de 1 milhão de cópias. Para esse trabalho, a artista reuniu um time estupendo de músicos para a banda: Luiz Brasil e Walter Villaça (violões e dobro), Alberto Continentino (baixo acústico), Fernando Nunes (baixolão), Paulo Calazans (piano e órgão hammond), João Viana (bateria), Lan-Lan e Thamynna Brasil (percussão), além das participações especiais de Nando Reis, da Nação Zumbi e do rapper Xis. Já o repertório fez uma retrospectiva da carreira de Cássia - “Malandragem”, “Nós”, “E.C.T.”, “1.º de Julho”, “Por Enquanto”, “Todo Amor Que Houver Nessa Vida”, “O Segundo Sol” - e trouxe alguns clássicos imortais como “Non, Je Ne Regrete Rien” (do reperório de Édith Piaf), “Vá Morar com o Diabo” (Riachão), “Sgt. Peppers’ Lonely Hearts Club Band” (Lennon & McCartney) e “Partido Alto”, de Chico Buarque. A MTV brasileira conseguiu eternizar uma intérprete singular, que ia da Chanson ao Pop, do Rock ao Rap, do Blues ao Samba com uma naturalidade impressionante.
Em 29 de dezembro de 2001, enquanto se preparava para uma apresentação para a Noite de Ano Novo no Rio de Janeiro, Cássia Eller sofreu um infarto do miocárdio, lhe causando quatro paradas cardíacas e levando a artista para longe de todos nós com apenas 39 anos de idade. A devastação de sua perda repentina foi seguida de uma batalha judicial em torno da guarda de Chicão, que foi criado por Maria Eugênia em uma decisão judicial inédita para a época e de trabalhos póstumos que trouxeram participações especiais, gravações inéditas e curiosidades.
20 anos após a sua partida, a chama do canto de Cássia continua flamejando com a mesma intensidade de seu canto seja por meio desses lançamentos póstumos, seja por meio do trabalho de Chico Chico (nome artístico de Francisco Ribeiro Eller, seu filho), seja por meio da memória afetiva dos fãs. Em 2022, ano de seu sexagésimo aniversário, há a promessa de que surjam tributos e mais lançamentos póstumos para manter o legado de Cássia Eller vivo na memória coletiva de todo um país, que apesar de ter demorado um pouco demais para compreendê-la sempre a amou.
Vinícius Rangel é mestre em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2007) e autor do livro O Doce & O Amargo do Secos & Molhados (São Paulo: Terceira Margem, 2015).
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