Cultura

Catulo: 155 anos da Paixão Cearense

segunda, 08 de outubro de 2018

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Aí está um homem que, como Hesiodo, se sentira também embalado pelas musas. Em sonhos, trouxeram-lhe a coroa de louros. Acordou poeta. Quem lhe penetrasse os mistério da alma, lá encontrara o fogo que Píndaro dizia levar a todas as coisas, para que elas falassem dos homens e dos deuses. É, porventura, essa fonte que desaltera o nosso poeta. A poesia à sua Cadmus. A imaginação é o monte Sagrado a que subira, em meio ao alvoroço do passaredo.

Repousava o Aédo, e, então, inspiradas abelhas vieram fabricar-lhe sobre os lábios o doce mel do Helicon. Os deuses, destarte, auspiciavam-no às musas. Na surpresa da música e da rima, tão nossa e tão flagrantemente hauridas na nossa natureza, Catulo dá-nos o enlevo de uma doce e saudosa ventura que se apagara ao contato das asperezas da vida...

Que forma espiritual despertara-lhe o desejo de descobrir no mito do amor, sempre radiante e intangível nos seus símbolos, nos seus enganos, nas suas dúvidas e nas suas alegrias, um novo modo de nos ferir o coração e de nô-lo agitar aos anseios de uma outra Corina?

Antigamente cantava-se por tudo. A vida era um hino. Louvavam-se os deuses, choravam-se os himeneus, cantando. Os tempos da colheita e da vindima eram exalçados pelos lirodos. Os hinos homéricos são pinturas desses costumes ingênuos que os berços e os requietórios conservam, como a expressão do sentimento religioso do tempo. O adultério d’Alfrodita, surpreendida por Héphoestos, inspira o Aédo, e essa história, cantada entre os jovens feacianos, arrebata-os e eles dançam semelhantes às Clodones lascivas... A Grécia, como todos os países, entoou, durante séculos, poemas, trenos, himeneus, hiporquenes. Só muito mais tarde é que com os aperfeiçoamentos e as combinações da música, a alma de cada povo se adorna com melodias mais ricas e uma poesia mais sábia.

Catulo da Paixão Cearense é o nosso Arquiloco. Iluminou a nossa modinha, dando-lhe formas rítmicas novas; vulgarizou, através dos seus versos e do violão, que transformou numa arma de combate, a música essencialmente brasileira. Porque não é difícil notar que nós também recebemos a influência da tradição, neste ponto. Cada povo, cada cantão da Grécia, teve, em matéria de canto e de música, seus hábitos hereditários, sua rotina obscuramente local e quase inconsciente. O talento, porém, dele as particularidades obscuras e monótonas da tradição; mais elevadas e constitui uma arte nova, por assim dizer, define o canto e o metro com uma energia superior, destinada a consolar, a exaltar ou a unir os corações no êxtase, no recolhimento, na fé. Ressentiam-se as nossas trovas daqueles hábitos hereditários. Eram dolentes, monótonas, vaporosas. Começaram abrasando-nos; nos últimos tempos, porém, enchiam-nos de um tédio insuportável.

Eram, se é lícito assim nos exprimirmos, instintivas, preparatórias de uma vida afetiva mais nobre, mais intelectual, mais agitada. Catulo Cearense, como Arquiloco, menos canta que receita. Mas fá-lo com tanta arte que a música, genuinamente nacional, não perde um só dos seus encantos, da sua apaixonada e elegíaca vibração, dos seus movimentos leves, aéreos, ondulantes... Não faltam aos versos, tão veementes lhe, pela originalidade e pela feição lírica, a graça, o patético, a inspiração pessoal.

O violão, que era um instrumento desprestigiado, companheiro inseparável das badernas e dos refestelos, o nosso ilustre troveiro reabilitou, impondo-o nos salões tornando-o um irmão do piano, do violoncelo e do violino. Outro é hoje o seu dialeto, a amplitude do seu acento. Sua inspiração é de uma simplicidade elegante, sem se haver despojado completamente das suas origens populares. Expungiu-se das espurcícias e das basofias dos bilhardões; elevou-se, afirmando-se como um vencedor para quem a vida se tornara um festim glorioso. Foi chamado a embelezar concertos aristocráticos, a coroar os sucessos dos salões, a ser o intérprete de Arquiloco. O violão ficou sendo nas nossas reuniões o que era o forminx nas festas brilhantes dos triunfadores gregos.

Catulo Cearense reuniu à graça da música o vocábulo exquis, demonstrando, destarte, que os helenos tinham razão ao distinguir nas letras duas línguas – a dos prosadores e a dos poetas. Esta possui “um ar particular de nobreza e dignidade, que se não encontra naquela”. Deve ser belo o altíloquo o vocabulário poético. Caleulando seus versos sobre músicas já feitas, teve muitas vezes de sacrificar a pureza do metro. Era mister arranjar palavras que acertassem no compasso da valsa ou da polca, algumas tão lindas, e que teriam sido esquecidas, se Catulo não as galvanizasse com o calor das suas estrofes, com o entusiasmo e o colorido da sua imaginação. 

Parecia coisa impossível destoar da tradição, neste ponto. O verso havia de conservar a monotonia e a dolência da toada.

De lá onde estás, Armia, 
Não podes meu canto ouvir,
Pois que a voz de um 
[coração
Tão longe não pode ir.

ou então:

De que me serve esta vida,
Tão cheia de dissabores,
Se Júlia por quem eu vivo
Não me compensa os
[amores

Com se viu, a modinha nacional já não servia ao enlevo e ao desafogo de ninguém. Os cantores dos trovadores tradicionais já não davam forma aos nossos sentimentos. Catulo não deixou morrer as velhas árias; animou-as com versos e pôs a serviço dessa lírica o violão, que ele maneja com elegância e a quem restituiu a primitiva prosápia. Fez o contrário de certos trovadores, depois de readquirirem a voz sepultada na mudez da Idade Média: “ao invés de aderir diante da variedade de formas novas que se introduzia à tradição do passado”, procurou, através o gênio musicista nacional, o que havia de mais afetivo, de mais apaixonado e de menos retórico e aplicou-o às suas novas e verdadeiramente interessantes combinações poéticas. Esqueceu, mui de propósito, a tradição, não só pela música de um brasileiro novo, senão também pela linguagem, que nada tem de vulgar. 

As divagações noturnas, que se haviam corrompido nas invocações dos seresteiros, não perderam com o novo troveiro o encanto diversivo. E elas que haviam enlouquecido os olhares, inflamado os corações e derramado lágrimas com as naturezas melancólicas, nos Solares da Provença e ao tempo de Sá de Miranda, revigoraram-se agora e constituem o melhor bocado dos nossos salões. Assim como o cultivismo romano modificou as tradições gaulesas, dando-lhes uma vida nova, assim também Catulo Cearense reanimou a nossa trova, insuflando-lhe um caso que não experimentará até então, uma veemência dramática ainda não vista e uma eflorescência de sentimentos, até hoje oculta nos mistérios da saudade da inspiração. Foi a ingênua Griselides, não sepultada nas abóbadas do castelo roqueiro, exposta à brutalidade baronial, mas abandonada às virações solitárias e melancólicas das aveclas, ou, então, a saracotear, como uma bagaça, na fanfarronada impudica dos goliardos, em noites de luar...

Que era preciso antes de tudo? Como o cismático d’Auvergne, furtar-se ao ônus da imitação tradicional. “Foi com esforço que cheguei a cantar de modo que o meu canto se não parecesse com o de ninguém”, ponderava um troveiro. "Aborrece-me dizer que choro e suspiro de amor; porque toda a gente sane dizer outro tanto. Quisera sobre árias agradáveis, versos novos”, exclamava outro. São os dois casos de Catulo: rompeu uma tradição esparsio sobre a música, essencialmente brasileira – tangos, valsas, polcas, shottisch, árias, etc. – versos líricos, originais, impetuosos, apaixonados, dramáticos. Não é pequeno o cabedal com que o imaginoso poeta concorreu para a nossa sentimentalidade lírica, que será vista, então, sob um outro aspecto. Interessantíssima a zona em que se espraiam as nossas crenças populares, em cantos, em canções. A alma do nosso povo assemelha-se muito à da Alemanha.

É também vasta, vaga, flutuante e fecunda, como dizia Michelet. Vai e vem, surpreendente, transbordante. Há em cada coração uma fonte de inesgotável inspiração. São ondas que se vão sucedendo indefinidamente, espalhando pelas praias e pelos campos, na sua bárbara e doce linguagem, uma poesia a agitar-se em uma espécie de cristal fluido, dando aos contrastes da nossa alma uma estranha transparência. Qualquer que seja o nosso esforço, quaisquer que sejam as nossas conquistas, as nossas audácias, os nossos empreendimentos, o nosso surto para a democracia, seremos sempre uma civilização, em cujo centro de cristal, maravilhosamente virgem, permanecerá esse fluido donde promana, para todas as antíteses interiores e exteriores da vida, um vasto gênio idealista.

Por toda a parte um panteísmo magnifico, incendendo livremente as veias da poesia! A dor não anda só na harpa dos poetas. Caminha num clarão de esperança, agitando o seu turibulo, através o esplendor dos céus e das montanhas. Não asilamos os sonhos inquietos de Koerner, e, sem sermos servilmente disciplinados, já começamos a escrever, com alguma originalidade, a nossa aparição no cenário político do mundo. Caminhamos de vagar, mas com firmeza. Quando tudo estiver pronto, saberemos correr. A liberdade desvendará os mistérios da civilização. E o nosso amor, o nosso poder, não ficarão circunscritos à majestade dos nossos vales e das nossas cordilheiras.  Afora o serviço que Catulo presta ao nosso folclore, há muito que admirar nos seus versos não destinados às árias, que fazem o encanto das nossas reuniões. É um poeta de representações mais subjetivas que objetivas. É pela força das sensações que se obtém a realidade da percepção, disseram-no já com justeza. 

Uma observação que M. Guyau havia feito, noto-a no poeta, que tanto tem dado que falar de si nestes últimos tempos. A literatura oriental e romântica, em lugar de insistir sobre a percepção objetiva, insiste sobre a emoção interior; em lugar de se apoiar sobre o sentido, muito intelectual da vista, empresta também suas imagens às do tato, do olfato, ao sentido interno suscita assim representações muito precisas, ainda que menos formais. A força das sensações, eis tudo: nada de nos emperrarmos na herança de que os símbolos devem girar sobre superfície imóveis. A inércia das coisas, como formas sugestivas da arte, é um contrassenso. A liberdade santa é a poesia, e a poesia é a religião livre. No seu domínio não há propriamente objetos da imaginação e objetos da realidade. Ela identifica-os pelas transposições. A eternidade não é o grande fator da poesia. Sendo o amor a sua principal razão de ser, seus símbolos nascem do que é móbil, porque o sofrimento sendo inerente à evanescência das coisas, a poesia só pode inspirar-se no que passa, pois só o que passa é que sofre. Passar é viver e viver é sofrer. A maior parte dos poetas sorri como A. de Musset; sorriso que é uma lágrima.

“Em se plaignant, on se
[console.”

Eis que a razão dos versos Catulo; eis o motivo do ruidoso sucesso dos seus cantares, dos seus trenos, em uma palavra, de suas melodias, de um sabor nosso!... Lastimando-se, consola-se e nós nos consolamos também, ao ouvi-lo vibrar as cordas da saúde e do mistério no violão, que o seu talento salvará da desmoralização do esquecimento. Nada nos faz tão grande como uma grande dor; disse-o um poeta. E é a grandeza dessa dor que ele interpreta, como ninguém, ao seu instrumento predileto, tornando-se assim tão querido da nossa sociedade. Depois é o respeito, a paixão da sua arte, que soube incutir em todos os corações, que o tornam o objeto dos nossos carinhos e do nosso interesse. Agrilhoou-nos à sua poesia, à sua maneira. E fazendo do sofrimento uma glorificação e uma transubstanciação, enleou as almas no mesmo êxtase, no mesmo culto. Quem sofre, eleva-se e é por querermos essa elevação, que, embevecidos, o escutamos nessa espécie de eclipse do coração que dá entrada a todos os mistérios, no momento solene em que a poesia e a música nos fazem divagar por mundos desconhecidos aos nossos sentidos. Tem o segredo esse homem bom e simples de nos fazer conceber o mistério. Conceber só, sem penetrá-lo. É o troveiro do que apenas se entreve. E, ao expor essa maneira de descerrar, a meio, as coisas não vistas pelos sábios e pelos filósofos da seca e estéril relatividade, coisas que acendem nos espíritos esse fogo de formas ideias tão santo como o de Moíses ou o de João de Patmos, Catulo desafoga os corações e enlaça-os uns aos outros, abrindo-lhes horizontes infinitos. Suas Imagens são vivas, originais, muito subjetivas, às vezes, e, por isso mesmo, sóbrias e sedutoras. É com a graça no dizer os seus versos, no cantar as músicas escolhidas entre as que o tempo havia amortalhado, que provou ter Schelling razão, afirmando ser a graça a expressão do amor. Com ela e por ela se ama e se é amado, e, elevando o seu trono no ponto do coração mais sensível e doloroso, edifica um império sem limites. Amar, amar, amar! Tortura do infinito a transbordar de uma humanidade para outra, de um para outro século indiferente às línguas, às raças, às filosofias, às religiões. Aí vão o amor, a poesia, o gênio, com as suas visões apanhadas fora dos sentidos externos. 

O prestígio da música está na razão direta da reconciabilidade da afeição. Cantando as suas trovas, o poeta maranhense adoça-nos o caráter. Pois “é cantando que nos dirigimos à fonte íntima da existência”, escreveu Mme de Strael. Por que, notai bem, sem entender-nos a letra de uma ária, vamos afogar-nos já enseada das suas lágrimas? É porque ela não nos engana; o seu leito é a afeição; os diferentes sons são graus de calor do amor, e o pensamento que dela emana, o reflexo ariado da luz divina. Dizia o grande Richer – o inolvidável discípulo do revelador do sentido espiritual do Apocalipse – que aos sons aumentam a energia da vontade e não as claridades do entendimento. A pintura e a poesia dirigem-se para ta lou tal ideia, a música só se dirige para o que há em nós de instintivo. 

Faz compreender o que se nos afigura incontestável, o sentimento, a paixão, o amor, sob todas as suas formada. Entra na vida e não no frio raciocínio, que está fora dela. A linguagem do céu deve ser uma derivação da afeição e do próprio pensamento. Pois bem, é esta a linguagem do violão de Catulo Cearense, e o seu estilo metafórico, a tradução de algumas dessas percepções espirituais, confiadas à memória dos homens. Despedindo-nos do poeto, desejamos receba o seu livro o acolhimento que é de esperar, tratando-se, como se trata, de um poeta tão novo, tão simples, tão nosso.

Luis Murat 
(Da Academia Brasileira de Letras)


*Texto extraído do livro "Catullo" de Carlos Maul.



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