Coisas Nossas

Chave de micro-ondas

segunda, 10 de dezembro de 2018

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Cheguei cedo ao meu primeiro dia trabalho na saudosa TVE. Tinha apenas 19 anos. Na portaria havia ordens expressas determinando que eu pegasse uma chave de micro-ondas  no estúdio 3. Não tinha a menor ideia do que era aquilo. Descobri que se tratava de uma peça de ferro, estranha, que pesava uns 10 kg, no tamanho e formato de um tijolo furado, fundamental para transmissão dos programas. A ordem era entregar no terceiro andar com a recomendação de não poder - em nenhuma hipótese  - usar o elevador.  Além de muito sensível, seria perigoso andar com ela no elevador, pois,  emanava uma “radiação elétrica”.  Não encontrei o destinatário no terceiro andar. Agora ele me aguardava no quinto andar. Outro desencontro. De lá fui para o segundo andar e... nada. Soube que já me esperava zangado e  impaciente. Continuei, nervoso,  indo para lá e para cá sem parar, com os braços cada vez mais doloridos. A maldita chave de micro-ondas, então,  já pesava uns 20 kg. Somente após a confidência de um querido amigo, descobri se tratar de um trote dado aos novatos. Na verdade, a peça radioativa era um peso de ferro que usavam para calçar os cenários da TV.

Cheguei ao setor musical todo suado, cansado, envergonhado e atrasado. O chefe do setor musical era o antigo radialista e compositor Fernando Lobo. Fui recebido por ele com cara de decepção e  desaprovação.  Nem desconfiei que tudo aquilo era uma encenação. Soube depois que fora ele quem havia planejado e autorizado o trote.  Todos sabiam da brincadeira, menos eu, é claro. 

Fernando Lobo era uma figura genial, brincalhão, carismático e cheio de boas histórias pra contar. Com certeza a pessoa mais engraçada que já conheci. Todas as tardes reuniam-se vários funcionários da TVE no setor musical para ouvirem suas histórias hilárias. Ele adorava toda aquela plateia, sempre caprichando nos detalhes. O curioso é que não conseguia ser engraçado diante das câmeras. Bastava acender a luz vermelha da câmera que ele se tornava o maior canastrão, totalmente sem graça. No fundo era tímido. Tinha também alguns costumes.  Nunca comia sozinho, por exemplo. A sobremesa era sempre queijo, às vezes com goiabada. Jogava sempre  os mesmos números na Sena. Toda semana dava dinheiro para um colega nosso fazer a aposta. No dia que saia o resultado este mesmo colega anunciava os números sorteados. Depois de ouvir o resultado, rasgava o jogo e dizia: qualquer dia eu acerto! Pois bem, depois de tantos anos trabalhando juntos, decidi que era chegada a hora da vingança.  Nunca havia me esquecido daquele trote da chave de micro-ondas engendrado por ele.

Esperei o prêmio da Sena se acumular. Naquela semana eram milhões. Com muito esforço e alguns favores, convenci o colega que anunciava o resultado semanal para mentir e dizer  exatamente os números da aposta que o Lobo sempre fazia. Para dar ainda mais  emoção ao plano, acrescentei – como quem não quer nada -  que apenas um jogador carioca havia acertado os números daquele sorteio. Sala cheia, todo mundo sabendo da brincadeira, começou a conferência da aposta: número 5, 13, 17 (ele levanta a cabeça, incrédulo), 29 (larga a caneta, já está desconcertado), só faltava um número. O colega dispara: 43. Fernando dá um pulo e um grito rouco. Imediatamente senta tentando disfarçar (era um homem discretíssimo), todos perguntam o que houve e ele declara que não houve nada, dando uma desculpa. Em poucos minutos fica impaciente. A sala estava pequena para um homem tão rico. Anuncia que vai pro bar, e que todos estão convidados para uma bebida, por sua conta. Mas o pseudomilionário nada revela sobre a sua sorte. Guarda pra si os sonhos do que fará com  tantos milhões.

Muitas cervejas depois - eu já com pena da felicidade do velho Lobo -  finalmente revelam toda a farsa ao seu ouvido. Ele não perde a compostura: engasga, dá uma risada forçada, conta outra história divertida, paga a conta e vai embora.


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