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Chico vingador e maneiro (2)

quarta, 24 de julho de 2019

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(Publiquei esta crônica quando Chico Buarque fez 70 anos. Republico atualizada no dia dos seus 75; e a dose pode se repetir em 2024, nos seus oitentinhas. Isso porque o maior compositor vivo da música brasileira e Prêmio Camões de Literatura 2019 continua o mesmo: nos vingando a cada canção, cada livro, cada declaração. Parabéns, poeta maneiro brasileiro.)

Chico nos vinga. Faz as canções que gostaríamos de fazer, escreve os livros que gostaríamos de escrever, declara o que gostaríamos de declarar e, quando veste sua alma com as idiossincrasias femininas, diz coisas que adoraríamos ouvir de algumas mulheres. 

É assim, há mais de 40 anos. Desde o "Pedro Pedreiro" que esperava o trem que não vinha, em certo 1964 cujos trens traziam o que havia de pior, que Chico nos vingava com o domínio mais puro e perfeito da poesia que parecia perdida. Depois nos vingou com suas provocações sutis e inteligentíssimas ao regime militar que a todos nós oprimia. Não tínhamos voz nem talento para o enfrentamento; Chico tinha. Estávamos todos ali, com ele, por meio dele, também repetindo que o pior ia passar e que amanhã seria outro dia. E parece que Chico nos ouvia. Pois a cada dia compunha mais, duelava mais, nos representava mais e melhor, nos enchia de brios e de esperanças.

Chico Buarque de Hollanda, o menino da "Maninha", que lembrava da jaqueira e ajudou a varrer tanta erva daninha chegou aos 75 anos, cultivando o sorriso que é quase grife – não se vê uma sombra de ódio nem de revanchismo em seu olhar – e o talento que impressiona a cada investida artística. Segue nos vingando. Tive a felicidade de entrevista-lo durante quatro horas, juntamente com os demais editores e colaboradores da revista Bundas, no dia de seu aniversário de 56 anos, no ano 2000. Luis Inácio Lula da Silva era apenas um contumaz perdedor de eleições e se preparava para vencer a primeira, o Brasil vivia um interminável e cínico império tucano, e Chico já apontava para o que esperava que um governo socialmente comprometido viesse a fazer:

– Não é possível que não se possa dar escola, sapato no pé, comida, hospital, atendimento básico, que não se possa fazer no Brasil algo parecido com o que se faz em Cuba, que é um país tão pobre.

O ídolo nos vingou pela inteligência e também pela simplicidade. Diante da pergunta de um dos tietes-entrevistadores (não há quem não se sinta tiete ao seu lado), “como você se sente, sendo o Chico Buarque”?, a resposta desconcertante:

– Eu não penso nisto. Tenho mais o que pensar.

Ao chegar em casa, a pergunta inevitável:

– Que tal a entrevista?

– Boa.

– Como é o Chico?

– Maneiro.

Pois me veio à mente certa noite no Carnaval de 1998, quando me preparava para ver o poeta pisar o chão de esmeraldas da Sapucaí, homenageado pela Estação Primeira de Mangueira. A caminho do desfile, parei em botequim do Estácio onde grupo animadíssimo batucava e entoava versos que diziam assim: “Página infeliz da nossa História/Passagem desbotada da memória”.

Molequinho de uns 11 ou 12 anos, na porta do boteco, repetia a letra, tintim por tintim.

– Sabe de quem é esse samba? – perguntei a ele.

– Claro. Chico Buarque – respondeu.

– Gosta do Chico?

– Pô!

– Que acha dele?

– Maneiro.


Imagem: Caricatura de Fani Loss

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