A música de

Clara Nunes: o canto do “Brasil que ficou longe dos olhos de Isabel”

por Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brügger

quinta, 18 de agosto de 2022

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Há 80 anos atrás, em Cedro, distrito de Paraopeba, hoje cidade de Caetanópolis, Minas Gerais, nasceu Clara Francisca. Sétima filha do casal Sr. Mané Serrador e Amélia. O pai trabalhava na Fábrica de Tecidos Cedro Cachoeira – onde mais tarde, os filhos (inclusive Clara) também trabalharam – e cuidava das plantações e criações no quintal de casa para alimentar a família. A música permeava o cotidiano através do violão de seu Manuel, que comandava uma folia de reis e fazia questão de cumprir seus compromissos religiosos, frequentando a igreja da cidade e impondo a reza do terço em casa. Música, festa e fé fizeram parte da formação da menina Clara e de sua família. 

Órfã de pai e mãe ainda pequena, Clara foi criada pelos irmãos mais velhos, José e Maria. Quando criança, gostava de brincar de cantar e de se apresentar em espetáculos organizados na escola, no teatro da cidade ou no coral da igreja. Na adolescência, fugia algumas vezes para cantar na rádio da cidade vizinha de Sete Lagoas. Se mudou, aos 16 anos, na companhia de alguns irmãos, para Belo Horizonte, onde, quando operária na Fábrica de Tecidos Renascença, foi descoberta pelo compositor Jadir Ambrósio, cantando em quermesses. Ele lhe abriu caminhos na noite e nas rádios da capital mineira. Ali o canto começou a assumir feição de trabalho. Ganhou, em 1960, a fase mineira do Concurso A Voz de Ouro ABC, assinou contrato com as rádios Inconfidência e Guarani e chegou a ter um programa próprio na TV Itacolomi. Gravou uma faixa, em 1961, no LP de comemoração dos 25 anos da Rádio Inconfidência. Foi rainha do carnaval de Belo Horizonte, em 1964. Ainda na capital mineira, tentou realizar o sonho de gravar um disco, através da gravadora MGL. Mas depois do compacto prensado, observou-se um problema no mesmo e a tentativa de refazê-lo fracassou diante da perda da gravação feita em São Paulo.

A oportunidade para novos horizontes apareceu quando o radialista e compositor José Messias esteve na capital mineira apresentando um show com artistas consagrados no cenário nacional. Ele narra, em seu livro de memórias, o ocorrido:

Na ocasião, estava eu em um inesquecível palco teatro, na capital do meu estado [MG], com a feliz responsabilidade de apresentar um megashow (...).
Estavam comigo Dalva de Oliveira, Orlando Silva, Emilinha Borba, Cauby Peixoto, Roberto Luna,  ngela Maria e Miltinho. (...)
Logo no início do espetáculo, alguém me procurou e apelou: “Temos um jovem cantor local que, com certeza, poderá ser um dos mais brilhantes desta noite”. Considerando minha sobrecarga de atrações, eu disse: “Não”. E o show continuou.
Em seguida chega um outro grupo que me assegura: “Tenho uma cantora que faz um baita sucesso na tevê local”. Mais uma vez eu disse não, já meio zangado.
Alguém, aparentemente um assessor do governo que, pareceu-me, estava patrocinando o show, asseverou diplomaticamente: “Seria muito bom que um outro talento mineiro brilhasse tanto quanto você”. Foi fundo. (...)
Para não perder a pose, já vendo a moça (muito bonita) ali por perto, sentenciei: “Então um número para ela e outro para o rapaz”.
(...) Quem é o rapaz? Perguntei. Era Silvio Aleixo, um negro elegante e porte de malandro refinado. (...) O crioulo entrou e arrasou.
Em seguida, anunciei a moça: Clara Nunes.
Ela, antes de cantar, interrompendo a introdução, falou: “Aproveito a oportunidade, e peço licença à platéia para duas homenagens. Primeiro, à Dolores Duran, recentemente falecida, e, ao compositor mineiro, José Messias, que fez um belo tributo à querida cantora. Este samba tem sido muito tocado nas últimas semanas em todas as emissoras de Belo Horizonte. Espero que todos cantem comigo”.
Cantou “O Sono de Dolores” de uma maneira tão emocionante e tão envolvente, que o samba mais parecia uma santíssima prece de saudade sobrenatural.
Chorei. Os artistas (nos bastidores) choraram. O auditório (de pé) chorou e cantou junto. E, em meio aos aplausos, continuou falando: “Viu Dolores, todo mundo chorou por causa de você”.
(...) No que me sobrou de fôlego e de inspiração disse: “Se mais não tenho, o que posso oferecer a esses moços mineiros são minhas mãos para ampará-los, minha voz para orientá-los, se preciso for, lá no Rio”. E eles aceitaram.
Pouco tempo depois, lá estavam eles, nos estúdios da Rádio Guanabara e da TV Rio, procurando-me.
Logo em seguida consegui um disco para o Silvio na Phillips. (...)
Coloquei Clara nos corredores e gabinetes da Odeon. Não foi fácil. Naquele tempo cantoras não vendiam discos. Eram deusas de popularidade; o povo cantava seus enormes sucessos em seus shows, em que elas recebiam incontáveis faixas e muitas coroas douradas; porém, não recebiam “Discos de ouro”.
(...)Por isso cantoras não interessavam ao mercado. Talvez por isso, a rejeição à Clara. (...)
Não desisti. Insisti. (...) Toda semana eu falava sobre o mesmo assunto; desde o porteiro até o diretor. (...) 1

A interferência de José Messias permitiu a Clara assinar contrato com a Gravadora Odeon e se mudar para o Rio de Janeiro, em 1965. No ano seguinte, saiu o seu primeiro LP, A Voz Adorável de Clara Nunes, dedicado à música romântica. Os anos iniciais da carreira foram pautados pela busca de um caminho que lhe permitisse se afirmar no cenário artístico nacional. Cantou de quase tudo: boleros, sambas-canção, versões de músicas estrangeiras, iê-iê-iê. Mas, em 1968, ouvindo sugestão de Ataulpho Alves, começou a dedicar um espaço maior em seu repertório ao samba. No entanto, a mudança de estilo, perceptível em sua performance vocal e de palco, só ocorreu a partir de 1970, quando passou a ser produzida pelo radialista Adelzon Alves. A cantora assumiu, a partir de então, como missão gravar músicas de diferentes gêneros ligados às tradições da cultura brasileira. Sua voz, doce e forte, entoou sambas, maxixes, forrós, jongos, frevos, cantos de trabalho etc. Essa linha de atuação artística, que se coadunava com sua vivência pessoal, manteve até o final da carreira, mesmo mudando de produtor a partir de 1974.

Cantou um Brasil Mestiço e Negro, no qual os trânsitos culturais não sintetizavam diferenças e nem construíam uma convivência social harmoniosa. O canto do Brasil Mestiço de Clara denunciou o chicote que estala, desde o tempo da senzala2, e a dureza do dia-a-dia do trabalhador3; afirmou que o negro entoou seu canto de revolta pelos ares, desde o Quilombo de Palmares4, e exortou a Nação-Oxumaré a rebentar a louça em seu mar de lama5. Clara, não à toa Deusa dos Orixás, afirmou e cantou publicamente sua fé nas religiões de matrizes africanas. Nas palavras de Pai Edu – responsável por sua iniciação na Umbanda, consagrando-a a Oxum nas águas do rio Capiberibe - era “uma mãe de santo nos palcos”. Assim, lutou contra o racismo e a intolerância religiosa. 

Se o nome de Clara não costuma aparecer nas listas de artistas engajados do período militar, isso se deve mais à estreiteza de nossos modelos acadêmicos de compreensão da realidade política, do que à sua postura. Como disse Antonio Callado, referindo-se ao espetáculo Clara Mestiça, de 1981, a cantora trouxe à tona um Brasil que ficou longe dos olhos de Isabel, a Princesa, e dos governos que se sucederam até o momento em que ele escrevia. Em suas palavras:

Como preceptora, governanta do menino Brasil, pupilo gigantesco, faltou compreensão a Isabel, e a seu pai. O pior é que o estilo da Corte acabou por instituir um estilo brasileiro de governo, uma determinação de só levar a sério uma parcela mínima da população. O povão ficou órfão desde aqueles tempos do direito divino dos reis até os dias de hoje, do reino de generais de direita. Pois o espetáculo de Clara Nunes que a Bibi Ferreira dirigiu vale muitos livros e muita reflexão sobre esse Brasil que ficou longe dos olhos de Isabel e que só parece inspirar desconfiança aos governantes. No palácio, como na caserna, tem faltado o Peixe com Coco6, cantado – eu ia quase dizendo servido – por Clara, ou o Dia a Dia7, de Candeia e Jaime: “Não é mole não / Acordar segunda-feira / Pra tentar ganhar o pão / Não é mole não”. Esse povo de brio e de graça refletido em Clara mestiça está batendo à porta8.

Pode-se estender essa afirmação de Callado para o conjunto da obra de Clara. Sua atuação política se manifesta pelo fato de cantar o cotidiano das lutas do trabalhador, as mazelas da sociedade brasileira e sua riqueza cultural e religiosa. Clara, em seu LP de 1979, afirmava a esperança de ver, entre as crianças do Morro da Saúde, no Rio de Janeiro, que com ela compuseram a capa do disco, surgir líderes políticos, religiosos e artísticos. A mensagem era explícita: ela valorizava a arte do povo, mas valorizava também e fundamentalmente as pessoas. 

Ao comemorar seu octogésimo aniversário, cabe destacar a atualidade de seu canto e de sua missão.  Para Clara, fé, festa e música foram sempre atos políticos. Não à toa sua voz, ainda hoje, passados mais de 40 anos de sua partida para o Orun, povoa não só rodas de samba, mas também manifestações políticas em diversas regiões do país.  Se o “Brasil que ficou longe dos olhos de Isabel” continua a inspirar desconfiança aos governantes e às elites desse país, o canto de Clara nos inspira a manter a esperança na construção de uma sociedade menos desigual e violenta.



Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brügger é historiadora, mestre e doutora pela Universidade Federal Fluminense, onde também fez seu pós-doutorado, com o projeto “O canto do Brasil Mestiço: Clara Nunes e o popular na cultura brasileira”. É professora da Universidade Federal de São João del Rei. Autora do livro Minas Patriarcal: Família e Sociedade (São João del Rei – Séculos XVIII e XIX). Coordena o Programa de Extensão “Memorial Clara Nunes”, responsável pela manutenção do acervo da cantora e desse espaço de memória em Caetanópolis, Minas Gerais.


Notas de rodapé

1 MESSIAS, José. Somos uma soma de pessoas. RJ: Kades, 2006, pp.214-216. Outra versão sobre a gravação de Clara na Odeon é apresentada por Aurino Araújo, à época, namorado de Clara. Segundo ele, ela teria assinado contrato com a Odeon como resultado de sua classificação no Concurso “A Voz de Ouro ABC”. A gravação teria sido postergada no tempo por relutância da própria Clara. Lembre-se que o concurso foi realizado no final de 1960 e seu LP saiu apenas em 1966. Cf. Entrevista concedida por Aurino Araújo a Josemir Teixeira e Marlon Silva, em Joaíma, Minas Gerais, em 15/12/2007. Essa versão foi endossada na biografia de Clara Nunes. Cf. FERNANDES, Vagner. Clara Nunes: Guerreira da Utopia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. No entanto, ela nos parece menos factível do que a apresentada por Messias e Clara. Em primeiro lugar, pela distância de tempo entre os dois fatos: o concurso e o lançamento do disco. Além disso, neste intervalo de tempo, são frequentes as notícias em jornais sobre as tentativas de Clara para gravação de um disco, inclusive com a realização de um deles pela MGL, o que seria impossível se ela já tivesse contrato assinado com a Odeon como afirma Aurino Araújo. Além disso, no acervo da cantora, no Instituto Clara Nunes, encontra-se o contrato assinado por ela com a Odeon, datado de 26/01/1965. 
Referência à letra da música “Brasil Mestiço, Santuário da Fé”, composição de Paulo Cesar Pinheiro e Mauro Duarte, gravada por Clara Nunes no LP Brasil Mestiço, Gravadora Odeon, 1980.
3 Referência à letra da música “Dia a Dia”, composição de Candeia e Jaime, gravada por Clara Nunes no LP Brasil Mestiço, Gravadora Odeon, 1980.
4 Referência à letra da música “Canto das Três Raças”, composição de Paulo Cesar Pinheiro e Mauro Duarte, gravada por Clara Nunes no LP Canto das Três Raças, Gravadora Odeon, 1976.
5 Referência à letra da música “Nação”, composição de Aldir Blanc, João Bosco e Paulo Emílio, gravada por Clara Nunes no LP Nação, Gravadora Odeon, 1982. Sobre essa música, ver o artigo BRÜGGER, Silvia M J. Filho Brasil pede a bênção, Mãe África: identidade negra no canto de Clara Nunes In: ABREU, M.; XAVIER, G.; MONTEIRO, L. E BRASIL, E. (org.) Cultura Negra: Novos Desafios para os Historiadores II – Trajetórias e Lutas de Intelectuais Negros. Niterói, EDUFF, 2018. Disponível em: http://www.eduff.uff.br/ebooks/Cultura-negra-2.pdf 
6 “Peixe com Coco”, composição de Alberto Lonato, Josias e Maceió do Cavaco, gravada por Clara Nunes no LP “Brasil Mestiço”. Gravadora Odeon, 1980.
7 “Dia a Dia”, composição de Candeia e Jaime, gravada por Clara Nunes no LP “Brasil Mestiço”. Gravadora Odeon, 1980.
8 Acervo do Memorial Clara Nunes. Pôster com reprodução do artigo: CALLADO, Antonio. Brasil de Isabel a Clara. Coluna Sacada, Revista Isto é, 1981.


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