Sobre a Canção

Clarice e Cazuza: “Como Reproduzir em Palavras o Gosto?”

quarta, 13 de março de 2024

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Há muitas maneiras de escrever uma canção. Há quem pense primeiro na melodia – alguns só pensam nela, e deixam outros colocarem a letra; outros, ao contrário, pensam primeiros nos versos, e para alguns os elementos vêm juntos à mente. Mas, no segundo caso, de uma letra que recebe melodia, provavelmente a situação mais desafiadora é a de musicar um texto em prosa. Um poema tem quase sempre algum tipo de regularidade que permite a divisão estrófica, a repetição melódica em versos do mesmo tamanho, sem falar das rimas. Nada disso está presente em um texto em prosa, e é preciso como que inventar meios de suprir estas ausências. Alguns compositores se aventuraram nesta seara. Um deles, numa parceria inesperada. Em algum momento da década de 1980, Cazuza, com o discreto auxílio de Frejat, musicou ninguém menos que Clarice Lispector. A canção “Que o Deus venha” só foi gravada pelo Barão Vermelho após saída do vocalista, no álbum de 1986, “Declare Guerra”. 


Frejat conta que Cazuza o procurou para fazer ajustes na canção e ele se espantou, pois ao ler a letra achou-a perfeitamente dentro do estilo do parceiro. O trecho musicado por eles vem do livro “Água Viva”, de 1973. “Água Viva” é, possivelmente, o texto mais ambicioso de Clarice, embora curto, cerca de 50 páginas apenas. “Água Viva” não chega a ter uma história a ser contada: sabe-se parcamente que a narração em primeira pessoa é feita por uma pintora, e é dirigida a um homem com quem, em algum momento, teve um relacionamento. E é só. O livro é feito de divagações da protagonista sobre seu mundo interno, suas sensações, e o desafio que é colocar em palavras estas coisas inefáveis. “Água Viva” é simultaneamente uma tentativa direta, sem rodeios, da descrição das subjetividades mais íntimas de um ser humano, e a descrição, igualmente subjetiva e metalinguística, do processo de fazê-lo.

Ao longo do texto, a narradora de “Água Viva” faz frequentes comparações entre a pintura, com a qual tem intimidade, com o uso da palavra para o mesmo fim de expressão, com a qual, segundo ela, não tem, e diz se atrapalhar. E em alguns outros momentos, ocorre também a comparação com a música. “Não se compreende música: ouve-se”, afirma ela. E mais adiante: “Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento” (…) Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários”. E finalmente, ainda mais adiante:

Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto é uno e as palavras são muitas. Quanto à música, depois de tocada para onde ela vai? Música só tem de concreto o instrumento. Bem atrás do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrás há o coração batendo. Assim o mais profundo pensamento é um coração batendo.

Como se vê, Clarice é pessimista quanto à possibilidade de converter em linguagem o que vai dentro, no entanto não cansa de tentar. E, se considera que no mais profundo do pensamento há uma pulsação, admite implicitamente a possibilidade de a música expressar o que busca.

Passemos então ao trecho escolhido por Cazuza, que teve pouquíssimos ajustes para receber música. A parte efetivamente incluída por Cazuza na canção vai frisada.

"(Estou) precisando mais que a força humana. Sou forte mas também destrutiva. O Deus tem de vir a mim já que não tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu não mereça. Venha. Ou talvez o que menos merecem mais precisem. Sou inquieta áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Ás vezes me arranha como sem fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei – assim como se come e vive o gosto da comida."

Cazuza, além de passar o eu lírico para o masculino, muda muito pouco no texto – a alteração mais impactante provavelmente está na parte final, em que ele troca o verbo perceberei pela expressão Vou aprender, e retira a palavra assim. Este verso acaba ganhando uma conotação ligeiramente diferente, e menos sutil, tornando-se “Vou entender como se come e vive o gosto da comida”. Mas mesmo esta modificação, nitidamente com o intuito de simplificar a frase de modo a torná-la mais compreensível ao ser cantada, não chega a ser prejudicial. O fundamental aqui, antes de tudo, é encontrar a regularidade do texto – sua pulsação, a batida de seu coração – que abra caminho para a melodia. E Cazuza consegue isso com o blues.

Evidentemente, o blues está inteiramente dentro do estilo do Barão Vermelho, e é uma escolha natural para muitos temas tratados pelo grupo e por Cazuza em sua carreira solo. Mas particularmente para este trecho de Clarice, ou para Clarice de forma mais geral, o blues se presta à perfeição, tanto tecnicamente quanto em espírito. Sua pulsação lenta e marcada como um coração, com uma base harmônica bastante simples (no caso, não a clássica sequência de acordes, mas uma em tom menor, mas ainda assim capaz de dar muita liberdade para o improviso vocal) permitem à voz de Frejat passear dando a cada frase a entonação de que ela precisa, sem a amarra de uma melodia que se repita, já que a harmonia já concede esta regularidade. Mas mais que isso, a própria ideia do blues como descendente direto dos spirituais, os cantos entoados para que o Deus venha, ajusta-se à noção do texto tornando-o uma espécie de prece torta – não à toa Frejat espantou-se que ele não fosse de autoria do próprio Cazuza.

O pesquisador Rafael Julião, em um excelente artigo sobre a relação entre Cazuza e Clarice, aponta:

O fragmento específico que dá origem a “Que o Deus venha” toca em um ponto de constante inquietude na obra de Cazuza: a incapacidade de amar, que se apresenta como o grande pathos do compositor. A recorrente afirmação do não saber amar (em tensão com seu intenso desejo de transitividade amorosa) atravessa várias de suas composições e se faz notória nos versos “embora amor dentro de mim eu tenha/ só que eu não sei usar amor”.

Formulações semelhantes aparecem nas letras de “Malandragem” (“eu sou poeta e não aprendi a amar”), “Rock’n’geral” (“ou de um coração meio surdo que não sabe amar”), (“não amo ninguém e é só amor que eu respiro”) “Não amo ninguém”, “Filho único” (“estou na mais completa solidão/ do ser que é amado e não ama”), “Nunca sofri por amor” (“será que nunca amei de verdade/ ou o verdadeiro amor é assim”), “Carente profissional” (“levando em frente/ um coração deprimente/ viciado em amar errado/ crente que o que ele sente/ é sagrado/ e é tudo piada”) e “Fracasso” (“mas eu tenho a impressão/ que todos nós somos fracassados/ eu, por exemplo: não amo…”).

Assim três pontos chave da letra estão posicionados exatamente sobre os mesmos acordes: os versos “Só que eu não sei usar amor” e “É que eu preciso que o Deus venha” são cantados sobre os acordes deslizantes de F para E7 – este a dominante, que conduziria à tonalidade e ao repouso, mas não conduz, pois a cadência é quebrada e vai em seguida em outra direção, deixando em suspenso o desejo, o amor, a espera da vinda de Deus. O terceiro ponto em que esta mesma harmonia é usada é, já na última estrofe (a canção ganha o formato clássico AABA), sob o verso “O delicado da vida”, em que a melodia desce para o grave e se suaviza acompanhando a letra, mas novamente ilustrando uma suspensão, já que a letra afirma esperar um dia experimentar esta delicadeza, antes da morte.

Assim, Cazuza e Frejat conseguem encontrar um delicado equilíbrio entre o ritmo livre do texto em prosa e a estruturação estrófica da canção, concedendo liberdade à melodia ao mesmo tempo que esta organiza o texto, a ponto de conseguirem uma única rima, em versos diferentes de cada estrofe, tenha/venha. Menos que uma rima, um eco distante entre a falta de amor e a espera de Deus.

E então, em seu álbum de estreia em 1990, Cassia Eller apresentou sua versão de “Que o Deus venha”.


Afora Cássia ter trazido o eu lírico da canção de volta ao feminino, sua gravação mantém, é claro, a atmosfera bluesly da canção, mas acrescentando-lhe algo de jazzy, devido à formação: Jorge Helder no contrabaixo acústico, Écio Cafaro tocando a bateria com vassourinhas, Nelson Faria ao violão e Zé Marcos no piano. O arranjo acústico tira bastante da agressividade da gravação original, mas a aspereza mencionada logo no primeiro verso permanece na voz de Cássia. Mas além disso, a mudança de timbres traz à canção uma certa sensação de desamparo. A solidão que na gravação do Barão era quase orgulhosa, em certa medida desafiando Deus a aparecer, aqui ganha em suavidade e um tom mais próximo da desesperança também mencionada na letra.

E no mesmo álbum, Cássia canta uma canção de um companheiro de geração de Cazuza, que aborda, por outro viés, um sentimento parecido: Por enquanto”, de Renato Russo, gravada inicialmente pela Legião Urbana em seu primeiro álbum, de 1984.


De alguma forma, “Que o Deus venha” e “Por enquanto” têm temáticas comuns, mas Cazuza (apud Clarice) fala em termos individuais, Renato em termos coletivos – o eu lírico de Por enquanto varia entre a primeira pessoa do singular e a do plural. A possível resolução do dilema existencial proposto por cada uma se resolve no aprendizado dos sentidos (Experimentar o delicado da vida), ou no compartilhamento da experiência (“Quando penso em alguém, só penso em você / e aí então estamos bem”). Mas trata-se fundamentalmente, não apenas de impasses similares, mas também do mesmo desafio de expressar esta subjetividade em palavras.

A gravação de Cássia para “Por Enquanto” faz a canção seguir um trajeto comparável ao de “Que o Deus venha”: se esta vai do blues rasgado e elétrico para algo mais próximo do jazz acústico, a de Renato passa de uma sonoridade eletrônica (que causou espanto ao fechar o álbum da banda) que pode ser relacionada à passagem da banda pós-punk Joy Division para sua nova formação de New Order após a morte do seu vocalista Ian Curtis – o que era fúria desesperada se converte em melancolia -, para um blues assumido e também acústico (aqui apenas o violão de Cássia), em que esta melancolia pode se derramar. Esta adaptação similar de ambas também as aproxima no álbum.

E mais uma decisão interessantíssima de Cássia faz a aproximação, não entre Renato e Cazuza, mas entre “Por Enquanto” e Clarice: a inclusão, como música incidental, de “I’ve got a feeling”, de Lennon e McCartney, do álbum “Let it be” dos Beatles, como introdução para “Por Enquanto”. “I’ve got a feeling, a feeling deep inside, a feeling that I can’t hide”. Um blues, um sentimento que não posso esconder, que preciso colocar em palavras. E este é o desafio, colocar em palavras. Já sabia Clarice

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