Música

Com Açúcar, Sem Desafeto: cantar ou não o passado?

por Caio Andrade

sexta, 04 de fevereiro de 2022

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Recentemente, Chico Buarque anunciou que não cantaria mais Com Açúcar, Com Afeto, sucesso de seu repertório e clássico na voz de Nara Leão (1942-1989), em função de pautas de movimentos feministas.

Antes de mais nada, é bom deixar claro que o texto a seguir não tem a mínima intenção de defender um lado ou tomar posições – a pessoa que mais teria uma posição para expressar seria o próprio Chico, e ele já a fez decidindo por não cantar mais essa música.

A canção, composta em 1967, fala de uma mulher doméstica, que conta (ou canta) suas desilusões amorosas por um marido que só quer saber da gandaia e da boemia enquanto ela fica em casa cuidando do lar. O autor comentou que foi a própria Nara, à época, quem pediu uma música nesse estilo, de uma "mulher sofrida", à la grandes compositores como Assis Valente, Ary Barroso e outros tantos.

Chico Buarque e Nara Leão em 1977 / Agência O Globo

Ora, num primeiro momento, se parar para analisar a postura de Chico, ele se mostra bastante coerente ao optar por não cantar mais essa música nos dias de hoje. Sempre com claras posições políticas e sociais, ele entende que a canção não cabe mais no mundo que estamos vivendo. De fato, realmente não cabe mais pensar na figura da mulher, da esposa, da amada, enfim, como aquela que só cuida da casa pacatamente enquanto o homem sai para sustentar uma família. No caso da música em questão, sai e volta quando quiser, e ela tem que recebê-lo de braços abertos e ainda perdoá-lo todas as vezes.

Em uma época que a cultura do "cancelamento" está bastante em voga, essa autocrítica do repertório que ele produziu desde os anos 1960 é bem feita e bem pensada, mostrando que o artista ainda está defendendo seus ideais e atento aos movimentos sociais de seu próprio tempo. Olhando para o contexto em que foi feita, há mais de 50 anos, não seria estranho também que houvesse uma letra problemática. Na verdade, que bom que evoluímos um pouquinho nesse intervalo a ponto de enxergar machismo, racismo e alguns discursos discriminatórios bastante frequentes em letras do passado.

Entretanto, um ponto importante de se pensar é o eu-lírico da canção, já que ele não reflete necessariamente a posição de um autor. Tanto que, nesse caso, a canção foi um pedido de uma amiga pessoal do compositor. Essa questão é abordada também por pesquisadores como Mauro Ferreira e Rodrigo Faour, que defendem a necessidade de se levar em conta o eu-lírico nesse processo.

Capa dos álbuns Nara Leão (Philips, 1967) e Chico Buarque de Hollanda Vol. 2 (RGE, 1967)

Além disso, para alguns, a música pode ser entendida na verdade como um desabafo, tendo a mulher da letra expondo a realidade melancólica na qual está imersa. Sendo assim, estaria Chico agora justamente denunciando uma triste verdade que era naturalizada e, portanto, ele e Nara sendo transgressores nesse sentido?

Como a professora e ativista Lola Aronovich mesmo disse, a música não está censurada, e, portanto, não vai sumir dos streamings, não vai ser proibida de ser reproduzida por outros artistas, nada disso – é apenas uma posição pessoal do autor, que, inclusive, não é nada unânime entre fãs, pesquisadores, músicos e todos que já ouviram Com Açúcar, Com Afeto.

No fim, o que se tem é uma discussão um tanto quanto pertinente, polêmica e inconclusiva que talvez fosse impensada há 10, 20, 50 anos, com uma autocrítica que vale para o repertório de diversos outros artistas da nossa MPB. Não existe, aqui, certo ou errado, apenas o diferente, ou sei lá o que



Caio Andrade é graduando de História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ) e Assistente de Pesquisa e Comunicação no Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) desde 2020Grande apaixonado por samba, pesquisa sobre o gênero há mais de uma década, além de tocar em rodas e serestas no Rio de Janeiro.

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