Amigo ao Peito

Concurso Villa Lobos de Vitória

quarta, 23 de outubro de 2019

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Quando ainda estudava violão, era atrevido. Por força das circunstâncias, conheci dona Mindinha, viúva de Villa, que administrava com mão de ferro e plumas o museu dedicado à memória do marido. Uma dama na acepção da palavra, um amor imensurável pelo maestro, também organizava concursos de música. Pois sabendo do tal concurso, perguntei a ela como participar. Nunca gostei de subalterno, se tiver que comungar vai ser com o Papa. Pois ela, elegante, não gargalhou na minha cara. Disse que o critério de seleção era por indicação ou currículo. Por exemplo, vencer o concurso do mesmo nome em Vitória seria o bilhete de entrada para o dela.

Como não conhecia ninguém que pudesse me indicar – e conhecendo hoje creio que não teriam me indicado – resolvi vencer o concurso capixaba. Nada mais simples. Chequei o repertório, curiosamente não tocava nenhuma daquelas peças, e resolvi meter a cara. Teria mais de um ano para aprender tudo, tempo mais que suficiente para alguém do meu talento.

O tempo foi misericordioso comigo, e me afastou dos palcos antes que   pagasse aquele mico – ou gorila. A luteria me pegou de vez e alimentei meu amor pelo violão de outras formas.

Mais tempo passou e fui conhecendo gente. Para usar uma expressão do colega de site Henrique Cazes (estávamos conversando na rua, fomos abordados por um rapaz que nos conhecia a ambos. Falei:

-Estamos ficando famosos! Ele:

-Não. Estamos ficando manjados!)

Fui ficando cada vez mais manjado e conhecendo todo mundo. Um dia, recebo um telefonema de meu querido amigo Jodacil Damaceno:

-Vamos para Vitória.

-Ok, vambora. Fazer o quê?

-Estamos no júri do Concurso Villa Lobos.

Não entendi nada. Como assim? Ao que entendi, a organizadora do concurso o chamou e pediu que ele indicasse outro jurado para violão. O irresponsável professor indicou a mim.

As pernas tremeram. Todos os meus últimos anos voltaram, e lembrei daquele garoto pretensioso que havia resolvido ganhar um concurso nacional. Não ganhara, sequer participara, mas ia enfim a Vitória participar do para mim mitológico certame. E havia mais uma coisa, dessa vez pessoal, que me ligava àquela cidade: meu bisavô ficou pobre por causa da construção do Palácio de Vitória. Um dos empreiteiros responsáveis pela obra, ao ver que não conseguiria cumprir a palavra quanto ao prazo, colocou dinheiro do próprio bolso. Exatamente igual a como se faz em obras públicas hoje em dia...

O dia da viagem chegava e meu nervosismo aumentava. Aquele era um dos principais concursos de música do país, um dos mais antigos e tradicionais, e era misto: Violão, Piano e Canto. Eu sempre escutei todo tipo de música, sempre tive opiniões fortes sobre interpretação, fui casado com uma cantora, mas honestamente não me sentia preparado. Coloquei minhas dúvidas para Jodacil, ele me assegurou que eu era suficientemente preparado, então vamos.

Fomos.

Chegando lá, conheci a fantástica Gracinha Neves. A responsável por aquilo tudo desde sempre. Figura famosa nos meios musicais, o estado devia a ela sua projeção na música clássica nacional. E passando o carro adiante dos bois, apesar de conhecer música profundamente, não deu um único palpite sobre NENHUM candidato durante TODO o concurso. Uma isenção absoluta, nenhuma interferência, os jurados tinham liberdade total para fazer seu trabalho.


Bem, começado o concurso, seriam as audições de piano a inaugurar os trabalhos. Éramos sete: 1 maestro, presidente do júri, dois professores de piano, dois de canto, eu e Jodacil representando o violão. Covarde, decidi que seria o último a votar. Imitaria Jodacil ou um dos professores de piano para não passar vergonha. Ao nos reunirmos para deliberar, o maestro, gentil – tão gentil que eu poderia matá-lo – disse que, como eu era o mais jovem, deveria começar as ponderações. Fiquei felicíssimo, como vocês podem imaginar. Mas respirei fundo e resolvi ser honesto, e dizer o que de fato achava. Para minha enorme e absoluta surpresa, ninguém rolou pelo chão rindo, ou me chamou de imbecil. Aliás, concordaram com quase tudo o que falei. A partir dali foi mais fácil e prazeroso, e uma das maiores alegrias de minha vida musical.

Acabou passando muito rápido. Mal cheguei, e já era a festa de encerramento, de entrega de prêmios. Nós no palco, com a sensação do dever cumprido (que fique o registro: não sou o maior fã de concursos, mas os considero ainda necessários. Avaliar o momento de um candidato – sim, o momento – é tarefa da maior seriedade, estamos lidando com o tênue tecido dos sonhos do estudante. Uma injustiça ali pode gerar um dano pesado na vida de alguém), entregando os prêmios. E ali, na minha frente, uma mesa com diversos exemplares do troféu tradicional, um violãozinho estilizado de metal. Entreguei alguns deles com o enorme desejo de pegar um e sair correndo. Resisti bravamente. Ao final da premiação, Gracinha nos chama e entrega, a cada um, um troféu. Recebi o meu e cada vez que lembro da cena confesso que rola uma lagriminha.

E me despeço, não quero causar um curto no meu teclado. 

PS: Este texto, com algumas alterações, será enviado para participar do livro que fala da memória da cultura capixaba.


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