Um papo com o Cazes

Crítica & Preconceito

terça, 06 de março de 2018

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Está difícil ser crítico. Não digo em textos ou colunas como esta, mas na vida real da mesa do boteco ou no neorrealismo fake das redes sociais. Quando você dá uma opinião, que não tem nada de extraordinário, apenas expressa o seu gosto pessoal ou sua avaliação técnica sobre uma realização musical, como é o meu caso, vem logo um daqueles caras que chamo de "caçadores de preconceito" e diz que você fala o que fala porque é preconceituoso e a partir de uma análise ingênua, superficial mesmo, encontra indícios para justificar a tal pecha. 

Ora, não existe crítica sem um pré-conceito, que você formou na experiência, no convívio com determinada forma de arte. A maneira como você se tornou um conhecedor de um determinado nicho da música, pode influenciar decisivamente seu gosto, sua crítica. Por exemplo, a geração que participou dos projetos de Canto Orfeônico, empreendidos por Villa-Lobos nas décadas de 1930 e 40, desenvolveu uma preferência por obras de cunho nacionalista no universo da música de concerto. Existem chorões, de famílias de tradição nessa música, que têm dificuldade em enxergar qualidade em composições fora do universo do choro. Toda essa estrutura individual de gostos e valores se desenvolve a partir de pré-conceitos, enraizados e amadurecidos ao longo de uma vida ligada a arte, de maneira profissional ou não. 

Quando os caçadores de preconceito partem para o patrulhamento das letras, como tem acontecido no Carnaval, em episódios que tentam constranger a execução de clássicos como "A cabeleira do Zezé", a coisa entra no estágio de histeria. Fico imaginando um desses caçadores espumando ao ouvir a segunda parte do delicioso samba de Ataulfo Alves, "Mulata assanhada". Diz o samba:

"Ai meu Deus que bom seria se voltasse a escravidão
Eu pegava essa mulata e prendia no meu coração
E depois a pretoria resolvia a questão"

Na visão do tal caçador, que despreza o contexto original da canção, Ataulfo, um cristão escravagista, planeja uma ação de cárcere privado, contando com a cumplicidade do poder judiciário. Pergunto eu:  não seria igualmente um preconceito a atitude de ler o mundo sem fantasia, problematizando tudo? Sempre haverá um preconceito, até para a crítica contra o preconceito. 

Por isso mesmo, não acho justo ter de abdicar dos valores que eu prezo e dos quais posso citar, por exemplo: as melodias de Pixinguinha, as harmonias do Tom, arranjos do Radamés, o virtuosismo de Jacob e Waldir, os versos de Noel e Aldir, a divisão rítmica de Cyro Monteiro ou Jackson do Pandeiro, e por aí afora, simplesmente para parecer moderninho e seguir a onda do "sem preconceito". 

Uma crítica franca, livre de intolerância ou segregacionismo, deve ser percebida como a verdade daquele crítico e sua ínfima colaboração para que artistas cresçam e se desenvolvam. O respeito ao contraditório, a reflexão e a melhor fluência de ideias críticas precisam prevalecer sobre a histeria dos caçadores de preconceito. Sem a crítica só nos resta a mediocridade.


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