A música de

Cynara em Cy

por Daniel Saraiva

sábado, 16 de janeiro de 2021

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“Quem quer cantar/ Ouve meu canto e vai se arrepiar”. Com essa frase Cynara abre seu primeiro e único disco solo. Mais de cinco décadas depois do lançamento, a cantora continua cantando, arrepiando e fazendo com que o público possa fruir a música brasileira. A faixa composta por Guarabyra e Sidney Miller "Pronta Pra Consumo" deu nome ao disco, hoje objeto de colecionadores. Lançado em 1969 pela gravadora Elenco, o disco tem entre os compositores das faixas Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, Danilo Caymmi, além de duas canções compostas pela própria Cynara, uma em parceria com Ruy Faria - seu marido à época e membro do MPB4 - e outra com Ruy e Sidney Miller. O disco é um entre tantos trabalhos na longeva carreira da artista.

 Capa do long play "Pronta Pra Consumo" (1969) (Foto: Reprodução)

Nascida na cidade de Ibirataia, no sul da Bahia, Cynara acaba de completar 76 anos nesse mês de janeiro. Ao lado das irmãs Cyva, Cybele e Cylene, formou o Quarteto em Cy. Ainda meninas, participaram do projeto Hora da Criança, idealizado e dirigido pelo professor Adroaldo Ribeiro Costa, que apresentava um programa educacional com o mesmo nome na Rádio Sociedade da Bahia. No projeto, as crianças participavam de aulas de canto, dança e teatro, realizavam apresentações e tinham, muitas vezes, seu primeiro contato com obras de autores famosos, como Monteiro Lobato. Ainda em Salvador, Cynara fez apresentações ao lado da irmã Cylene em programas da TV Itapuã. Em meados de 1962, Cyva, a irmã mais velha e já formada em Letras Clássicas, muda-se para o Rio de Janeiro. Professora de português em colégios estaduais e particulares, a primeira Cy não deixa a música de lado e participa de programas de calouros como Papel Carbono, de Renato Murce, na Rádio Nacional. Vislumbrando uma carreira musical junto com as irmãs e depois de circular por ambientes que se tornariam conhecidos pela efervescência musical, Cyva consegue trazer as irmãs para a cidade maravilhosa.

Em 1963, o grupo participou da trilha sonora do filme "Sol Sobre a Lama", de Alex Vianny. A indicação para este trabalho veio de Vinicius de Moraes, encantado com a voz de Cyva e ainda mais entusiasmado ao ver as quatro irmãs juntas. O poeta é compositor das letras das canções que compuseram a trilha do filme, enquanto Pixinguinha é autor das músicas. Além de apadrinhado por Vinicius de Moraes, o Quarteto em Cy também contou com o acolhimento de Carlos Lyra que batizou o grupo, as irmãs logo despontaram na cena artística.

Foto: Reprodução / Paulo Lorgus

No ano de 1964, o Quarteto em Cy lança seu primeiro disco pelo selo Forma, produzido por Roberto Quartin e com musicas de Edu Lobo, Ruy Guerra, Carlos Lyra, Vinicius de Moraes, Sérgio Ricardo e Tom Jobim, entre outros compositores que consolidariam futuramente a sigla MPB. Até 1968, o Quarteto teve agenda cheia, incluindo o lançamento de diversos discos como "Vinicius e Caymmi no Zum Zum"(1965), "Som Definitivo - Quarteto em Cy e Tamba Trio" (1966) e "De Marré de Cy"(1967), lançados pelos selos Forma e Elenco. O Quarteto também participou do disco que se converteu em um dos marcos na música brasileira, "Os Afro-Sambas" (1965), de Vinicius e Baden. No texto original da contracapa o poeta destaca a qualidade vocal do grupo e da cooperação e dedicação ao LP.

A primeira mudança na formação do grupo ocorre no ano de 1966: Cylene engravida e entre a vida artística e a maternidade, a cantora escolhe a segunda. Cilene volta a grafar o nome com i e torna-se professora universitária. Em seu lugar, entra a jornalista, compositora e cantora Regina Werneck. No ano seguinte, o grupo embarca para os Estados Unidos a convite de Aloysio de Oliveira. O motivo principal da viagem é uma apresentação no programa Andy Williams Show, transmitido pela NBC de costa a costa. Na terra do tio Sam as meninas ficam conhecidas como The Girls From Bahia e lançam pela Warner Internacional discos como "Pardon My English" (1967) e "Revolución com Brasília" (1968). A apresentação no programa de Andy Williams conta também com a presença do cantor e compositor Marcos Valle. Rapidamente, as cantoras começam a frequentar eventos onde encontram estrelas de Hollywood. São cinco meses intensos de festas e grandes eventos artísticos. Entre um e outro, Cynara troca cartas com o namorado Ruy Faria, que também a atualiza dos acontecimentos no Brasil. 

Em maio elas voltam ao seu país e recebem proposta para passar mais dois anos nos Estados Unidos. Cynara e Cybele não aceitam. Em nome da permanência do grupo, Cyva e Aloysio de Oliveira decidem procurar duas cantoras para substituí-las: Sônia e Semíramis. Enquanto o Quarteto segue com nova formação rumo aos EUA, Cynara e Cybele formam uma dupla. Em 1967, elas defendem, no II Festival Internacional da Canção (FIC), a música "Carolina", de Chico Buarque. A canção conquista o terceiro lugar e estoura, figurando, até início de 1968, entre os compactos simples mais vendidos segundo o Ibope. Ainda em 1968, as duas irmãs lançam outro compacto simples com as faixas "Januária" de Chico Buarque e "Quase Um Adeus" de Luiz Eça e Vinicius de Moraes. Em abril daquele ano, o disco também aparece entre os mais vendidos. "Januária" e "Carolina" estão entre as doze faixas do único Long Play lançado pela dupla, que inclui ainda "Pelas Ruas do Recife", de Marcos e Paulo Sérgio Valle e Novelli, com produção de Hélcio Milito e arranjos de Dori Caymmi e Luiz Eça.


Mas ano de 1968 reserva ainda mais emoções. Entre setembro e outubro, elas participam do III Festival Internacional da Canção (FIC). A música defendida é "Sabiá", parceria de Chico Buarque e Tom Jobim. Ao serem anunciadas como vencedoras, as irmãs recebem uma vaia homérica no Maracanãzinho. O público faz coro por outra favorita, a canção "Pra não Dizer que não falei das Flores", de Geraldo Vandré.  Vencida a etapa nacional, "Sabiá" também vence a etapa internacional. E apesar do constrangimento das vaias, o compacto simples com a faixa vencedora entra entre os mais vendidos. No mesmo ano, a dupla defende, no IV Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record, a canção "Sentinela", de Milton Nascimento e Fernando Brant. Milton participa da apresentação com Cynara e Cybele, e a canção fica entre as finalistas.


Depois de um ano de muito trabalho, repercussão e sucesso, a dupla se dissolve. Cybele vai aos EUA se juntar ao Quarteto em Cy. Cynara dá seguimento à carreira solo e grava um LP. Sua composição "Mar da Tranquilidade", em parceria com Ruy Faria e Aquiles, é defendida pelo MPB4 no V Festival da Musica Popular Brasileira da TV Record, em 1969. No ano seguinte, Cynara dá à luz a João Faria, o primeiro de seus três filhos com Ruy Faria, com quem casou em 1968. 

Em 1971, Cyva, recém-separada de Aloysio de Oliveira, volta ao Brasil. No ano seguinte, seria a vez de Cybele retornar. O Quarteto ressurge em 1972 com Cyva, Cynara, Sônia e Dorinha Tapajós, que fica no grupo até 1980. Com essa formação, o Quarteto grava nada menos do que oito discos e faz diversos shows pelo Brasil, como o "Quarteto em Cy em 1.000 Kilohertz" (1979). 

Dorinha se afasta do grupo em 1980 por questões de saúde, e Cybele retorna ao Quarteto. São lançados mais quatro discos até a pausa do grupo entre 1983 e 1987. Nesse momento, Cynara é contratada por Maurício Sherman e começa a trabalhar como coordenadora musical dos vários programas musicais da grade da TV Manchete. 

O grupo se reúne novamente em 1987: Cyva, Cynara, Cybele e Sônia, e o Quarteto recebe convite para apresentação em Tóquio, em 1989, em um festival pelos 30 anos da Bossa Nova. Carlos Lyra e Leila Pinheiro também estão entre os convidados. O grupo ainda voltaria mais duas vezes ao Japão, em 1997 e 1998. Até 2006, o Quarteto grava mais de uma dezena de discos. O último disco, porém, "Janelas Abertas" (2016), não conta com a participação de Cybele, falecida dois anos antes. 

Em entrevista para o site História da Ditadura, Cynara destaca a importância e a multiplicidade da música brasileira: não se deve colocar música “em escaninho” e enfatiza que, ao longo da carreira, as irmãs cantaram de tudo. Como marca forte do Quarteto, escolhe a constante preocupação com a excelência das músicas que compuseram o repertório do grupo.

Nos últimos anos, Cynara, ciente da importante história que percorreu na música brasileira - de forma individual, ao lado de Cybele ou com o Quarteto em Cy - resolve abrir seu baú. Em 2012, lançado pela coleção aplauso a biografia do grupo "As meninas do Cy: vida e música do Quarteto em Cy", escrito pela jornalista Inahiá Castro. A biografa descreve Cynara como a espinha dorsal do grupo 

"Mas se o Quarteto em Cy tem em Cyva um coração, em Cynara o grupo tem a espinha dorsal. De personalidade extremamente ativa e dona de uma praticidade invejável, Cynara não só é a responsável pela produção e comercialização dos shows como também assina, hoje em dia, a maioria dos arranjos vocais do grupo" (CASTRO, 2012,p.145).

Entre 2018 e 2019, o Quarteto lança dois boxes de cd´s pelo selo Discobertas, com produção executiva de Marcelo Fróes e com áudios pertencentes às irmãs remanescentes do Quarteto em Cy, Cyva e Cynara. No primeiro box há três discos: o primeiro é o áudio do show "Contraponto" realizado ao lado do MPB4 e gravado em 1965. O segundo show, em parceria com Billy Blanco, de 1966, é "O “Y” no Samba"; e o terceiro áudio contém o show no Teatro Reitoria de 1975. O segundo Box traz shows gravados na década de 1980 nas cidades de Fortaleza, Rio de Janeiro, Niterói e em Tóquio. Nos dois boxes, Cyva e Cynara contam as histórias do momento em que os áudios foram gravados.

Em 2020, Cynara cede parte de seu acervo para que seja digitalizado, catalogado e publicado no projeto Amabile: Arquivo da Memória Artística Brasileira, coordenado por Ricardo Santhiago professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Trata-se de um arquivo digital voltado à preservação de acervos culturais da memória artística brasileira. O acervo da cantora ficará à disposição de público e pesquisadores para que possam ser utilizados não apenas nas pesquisas, como no processo de rememoração das trajetórias por admiradores e público amplo. Está ainda em processo de confecção um livro sobre as cartas trocadas entre Ruy e Cynara em 1967.

A trajetória de Cynara na música brasileira perpassa diversos momentos de grande importância para a história da música no Brasil, incluindo shows, festivais, discos, parcerias e redes de sociabilidade. Como dizem Ruy Quaresma e Nei Lopes em "Samba em Cy": “Assim se conta essa história/ De muitas lutas e vitórias/ E o amor vai sempre resistir/ Cantado em dó, ré, mi, fá, sol, lá, si”. 



Daniel Lopes Saraiva: Historiador, mestre em História pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) e doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), onde desenvolveu pesquisa sobre a música nordestina nos anos 1970 e 1980.



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