Colunista Convidado

Daniela e Sheila revisitam a obra de Jacob e seu filho Sérgio Bittencourt

quinta, 16 de julho de 2020

Compartilhar:

Catedrático na arte do instrumento que lhe valeu o sobrenome artístico consagrado, Jacob Pick Bittencourt (1918-1969), o Jacob do Bandolim, também foi estupendo compositor. E não se limitou ao choro de sua devoção, espraiando sua criatividade por gêneros conexos ou até distanciados, como a pegada andaluz da valsa “Santa Morena”, uma de suas composições mais regravadas nos últimos tempos. Ela ressurge entre tinturas flamencas e frullatos de sopro, na incandescente homenagem do duo formado por Daniela Spielmann (saxes soprano, tenor e flauta) e Sheila Zagury (piano), em faixa do álbum “Entre mil...você! – Um tributo a Jacob do Bandolim” (Kuarup). Já na faixa título, na abertura, este choro pouco badalado de Jacob abre-se a improvisos entre o jazz e a bossa nova. O ortodoxo chorão só viria a defrontar-se com o gênero modernista no histórico show com seu grupo Época de Ouro, ao lado de sua revelada, a cantora Elizeth Cardoso, e o bossanovista erudito Zimbo Trio, no teatro João Caetano, em 1968. Outro pilar da música popular nacional sincopa o portfólio autoral do celebrado na “Receita de samba”. Com a costura do bandolim afiado de Almir Cortes, o calço inquieto do pandeiro de Roberta Valente, Daniela e Sheila desconstroem e reedificam o tema em sete minutos e 19 segundos de improvisos estonteantes.

Foto: Clau Pomp

Também expõe a destreza das intérpretes, que ainda contam com Rodrigo Villa (baixos acústico e elétrico) e Xande Figueiredo (bateria), os velozes “Bole bole”(com espaço para improvisos de baixo e bateria) e “A ginga do Mané”. Esta ode instrumental ao gênio futebolístico das pernas tortas, Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha (1933-1983), procura reproduzir seus dribles infernais. E ainda conjuga choro e seu contemporâneo americano, ragtime. Tantas citações, referências e domínios estéticos se coadunam com a retrospectiva das trajetórias das solistas. Daniela participou de grupos como Rabo de Lagartixa, Mulheres em Pixinguinha, tocou com Zélia Duncan, Moyseis Marques, Sivuca, Zé Menezes, Zé da Velha, Silvério Pontes, Anat Cohen e obteve o título de Mestre em Música na Uni-Rio com sua tese de mestrado sobre a performance de Paulo Moura. O doutorado em Musicologia abordou as gafieiras do Rio, e a atual professora de Música do Cefet-RJ Maracanã, que estreou solo no disco “Brazilian breath” (indicado ao Grammy Latino de 2002), é convidada freqüente de oficinas, palestras e workshops no Brasil e exterior.

Sheila é professora da Escola de Música da UFRJ, onde também atua na área de pesquisa, participa de congressos, e, em 2014, concluiu Doutorado em Música na Unicamp, defendendo tese sobre o choro nos anos 1990, no Rio. Atuou com  Angela Rô Rô, Eduardo Dussek, Rio Jazz Orchestra, UFRJazz, Neti Szpilman, Áurea Martins e Edu Kneip. Também integra grupos como Cyclophonica, Orquestra Lunar, Orquestra de Gafieira, além de duos com o gaitista José Staneck e o trio Harmonitango (mais o violoncelista Ricardo Santoro). É parceira de Daniela há vinte anos, e, em 2007, elas lançaram o álbum “Brasileirinhas”.

Foto: Clau Pomp

Embora dedicado a Jacob, “Entre mil...você!” também homenageia seu filho, o jornalista e compositor Sérgio Bittencourt, de curta, mas marcante, carreira autoral. Sua seresteira bachiana “Modinha”, que venceu o festival “O Brasil canta no Rio”, em 1968, na voz de Taiguara, é recriada com sutileza por Soraya Ravenle. Ela também canta outro clássico do autor, o samba “Naquela mesa” (acoplado a “Benzinho”, de Jacob), em que lamentava a saudade do pai falecido, sucesso na voz de Elizeth Cardoso, em 1972, posteriormente recriado por um dos expoentes do mangue bit pernambucano Otto, em 2009. Caixa de fósforo e pandeiro de Clarice Magalhães pontuam a repaginação do tema. Também entram no repertório, os clássicos de Jacob, “Doce de coco”, “Migalhas de amor” (destaque para os desempenhos de Catherine Bent no violoncelo) e o rodopiante “O vôo da mosca”, mais eloquentes oportunidades para a dupla central destilar o alto refino de suas performances.

Tárik de Souza


Comentários

Divulgue seu lançamento