Um papo com o Cazes

Desmaterialização e desprofissionalização na música

segunda, 16 de março de 2020

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Dentre todas as artes, é sabido que a música é a mais abstrata, a mais evanescente. Por isso mesmo, a existência de um produto físico com o conteúdo musical foi tão importante para o surgimento, o desenvolvimento e a profissionalização no campo da chamada música popular urbana. Se no universo da música de concerto, orquestras e corais e mesmo as bandas de música, tiveram o suporte financeiro disponibilizado por nobres e depois por instituições particulares ou estatais, na música popular tudo aconteceu em torno do produto fonográfico. Em torno dessa indústria, que teve evolução vertiginosa ao longo do século XX, tanto em termos de qualidade técnica dos produtos quanto na constante ampliação do universo de vendas, uma cadeia de produção surgiu e se profissionalizou. Essa cadeia que contava com o criador da canção, o intérprete, o produtor do disco, o arranjador, o corpo técnico que cuidava do som e da fabricação do produto, os músicos que executavam o arranjo, fotógrafos, artistas gráficos, etc., sofreu um grande abalo com o desaparecimento da representação física de um trabalho musical e as consequências devastadoras foram sentidas sobretudo pela parcela mais frágil desse contingente de trabalhadores. A começar pelo compositor.

Quando conversava com o saudoso Argemiro, grande sambista da Velha Guarda da Portela, ele sempre falava: minha casa veio com "A chuva cai lá fora" e depois eu reformei com o "Gorjear da passarada". Ao citar os dois sucessos gravados por Beth Carvalho, feitos em parceria com Casquinha, Argemiro resumia o sonho de todo sambista: ser gravado, fazer sucesso e ter um refresco na luta pela sobrevivência. Com os compositores da classe média não era muito diferente. Colocar uma música na novela, gravar com um intérprete de destaque, cada esforço criativo era dirigido objetivamente.

Um outro aspecto que se desprofissionalizou foi a própria gravação em si e nesse caso ocorreram motivações tanto técnicas e quanto musicais. No tempo da gravação analógica, o músico que não tocava com precisão simplesmente não gravava. Não haviam os recursos que a gravação digital trouxe, e que fez cair o nível de exigência em relação a quem grava, aumentando a oferta de mão de obra e barateando seu custo. No aspecto musical, o empobrecimento se deu de maneiras variadas em diferentes segmentos do mercado. Se tomarmos o samba como exemplo, o desaparecimento de uma negociação da polirritmia entre os seis, oito músicos que executavam uma base, negociação essa atentamente mediada pelo arranjador, era um diferencial. Hoje uma gravação de samba começa com um metrônomo e um mesmo músico tocando vários instrumentos. Na maior parte das vezes o produtor é o arranjador e e ele mesmo toca em vários canais. Já a polirritmia é administrada pelo técnico de som. Poucos artistas têm orçamento disponível para fazer uma gravação com um grupo tocando junto. Ou seja, como disse o cavaquinista e produtor Alceu Maia, em uma entrevista recente, falando da nova realidade de gravação no samba: "a gente toca ao mesmo tempo, mas não toca junto". Tudo isso fez o samba gravado perder um tanto de sabor.

Reparem só, quando surge um projeto celebrando um ano como marcante para música popular no Brasil ou a remontagem de um repertório de um álbum igualmente marcante, esses produtos certamente foram realizados entre os anos de 1970 e 1995, justamente o período que o mercado da música foi mais profissional e mais regulamentado. Pirataria, MP3 e, atualmente, a remuneração aviltante paga sobre a música comercializada por streaming, se encarregaram sucessivamente de deprimir uma cadeia produtiva e criativa. 

Foto: Paulette Wooten

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