Don L e "Roteiro Para Aïnouz Vol. 2" | Entrevista
Muito mais guerrilheiro que MC, como ele mesmo diz, o Don L deu sequência à trilogia reversa dos seus álbuns com o incrível "Roteiro Para Ainouz Volume 2". Disposto a morrer pelo que acredita, o Don L nos convida à revolução e eu troco uma ideia com ele sobre arte anticapitalista, cinema, drill, comunismo e muito mais.
Nascido em Brasília e criado em Fortaleza, a vida do Don L se parece muito com a dos personagens do conterrâneo Karim Ainouz, cineasta que costuma trabalhar o êxodo e o não pertencimento nos seus filmes, temas que o Don L lida até hoje.
Se ele é conhecido por ser a referência das referências no meio do hip hop é por conta da sua trajetória única. Desde o início da carreira com o lendário grupo Costa a Costa, o Don L se destacou por conta da sua genialidade com as palavras, os flows profundamente complexos e, claro, a capacidade de fazer músicas extremamente imagéticas e que nos transportam para outros lugares.
Mas antes de falar do Roteiro Para Ainouz Volume 2 e a gente entender como ele chegou onde está, eu pedi pro Don L contar um pouco de como o rap e a militância política apareceram na vida dele, se liga:
"Quando eu conheci o rap ele tinha uma carga política muito grande na minha cidade. Era uma cidade que não tinha uma perspectiva de alguém viver do rap. O rap era muito contracultura, a contracultura da contracultura.
Era também um movimento social, então a gente se organizava em posses de bairro e tal. Eu vim primeiro pela música, mas como era assim que o hip hop funcionava na cidade eu comecei a me aproximar das pessoas e entender essa parte da militância política."
Bom, depois do Costa a Costa o Don L se lançou como artista solo a mixtape Caro Vapor, uma verdadeira obra prima que conta com "Beira de Piscina", parceria com o Rael que alavancou a carreira dele.
Em seguida ele inicia a tal da trilogia reversa que eu mencionei. Em 2017 ele lançou o Roteiro Para Ainouz Volume 3, um álbum já considerado um clássico que conta um pouco da chegada dele em São Paulo, autoconhecimento, a sede de se fazer acontecer e suas vivências sempre muito cinematográficas.
E finalmente chegamos em RPA 2, um álbum que faz a gente imaginar uma revolução onde morrem os senhores de engenho, prisões se abrem, derrotados tomam o protagonismo e do capitalismo restam apenas ruínas.
Nesse roteiro sem ordem cronológica o Don L quer ensinar pra gente que é possível ser feliz na luta uma vez que estamos dispostos a morrer pelo que acreditamos.
Um dos destaques de RPA 2 foi a produção, assinada majoritariamente pelo próprio Don L e o Nave, um dos principais produtores do Brasil. Muita gente, e eu também, ficou surpreso em ouvir o Don L rimando no drill, explorando novas sonoridades e provando porque é um dos MCs mais respeitados da história do rap nacional.
É doido como ele consegue usar desses artifícios de maneira que não soa forçada ao mesmo tempo que tá passando uma mensagem super séria sobre política e tal.
Fazendo minha pesquisa pra essa Resenha eu me deparei com um episódio do Central da Periferia, aquele programa apresentado pela Regina Casé, sabe? Daí teve um em que ela foi a Fortaleza trocar uma ideia com o Costa a Costa, e pensando nessa questão de conciliar o discurso político com seduzir o ouvinte eu tive que fazer a mesma pergunta que ela: Qual é a receita pra ser uma música que todo mundo gosta, vai no show, compra o CD e ao mesmo tempo continuar passando as mesmas mensagens do hip hop?
"Pra você ver como já tava lá, né? Tava tudo ali já. A gente já estava fazendo isso no Costa a Costa. Isso não é uma construção minha, é coletiva. A gente começou a construir isso juntos e eu continuo tentando ter esse conteúdo, essa substância. E não abrir mão de ser esteticamente foda. Eu quero ser o mais brabo. Quero fazer arte popular e ao mesmo tempo de vanguarda, entende? Quero fazer pop art mesmo.
Eu rimo em qualquer parada, né, irmão? Os caras ficam surpresos comigo rimando no drill, mas eu sempre rimei em tudo. Desde lá com o Costa a Costa eu tô rimando em um reggaeton carimbó, no R&B, no down south de sei lá qual categoria de rap."
Foto: Divulgação
Um dos pontos centrais de RPA 2 está na importância de ressignificar a história e dar o protagonismo para os povos que foram derrotados e deixados de lado ao longo dos anos. O Don L traz aos holofotes os quilombolas, indígenas, favelados, escravos, proletários e oprimidos e conta pra gente um pouco sobre a importância de subverter narrativas:
"Eu tento inverter o mito original do ser brasileiro. O branco de classe média e baixa gosta muito de falar 'Ah, meu avô catou minha avó no laço', 'tenho sangue indígena na minha família e isso me faz forte'. Só que ele está contando a história de um estupro ali.
Eu tento inverter essa história e digo que enforquei um senhor no laço. Quem vai pro laço é o senhor de engenho. Essa inversão é muito central pra mim, saca?"
Por fim, o Don L comenta sobre a dualidade de furar a bolha como artista e também como comunista e, assim como em RPA 2, propõe um debate sobre arte anticapitalista e a necessidade de mobilização popular:
"Eu acho que é muito importante a gente ter uma arte anticapitalista e que tenha viabilidade de continuar sendo feita. E pra isso eu preciso furar a bolha como artista também, né? Mas, ao mesmo tempo, eu não tenho como separar as coisas, eu sempre vou levar o que eu penso, entende? Em alguns momentos pode ser que as pessoas escutem só a minha música mesmo, os lovesongs e curta, tá ligado? Pode até não compartilhar das minhas ideias, mas eu acho que vai ser dificil… Eu acho que se a pessoa prestar atenção mesmo, ela vai entender o meu ponto. Eu quis muito provocar esse sentimento de se organizar, das pessoas procurarem entender que política não é voto, não é eleição. Política é poder popular."
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