A música de

Dona Ivone Lara: a construção de uma referência feminina no samba

por Bruna Aparecida Gomes Coelho

quinta, 28 de abril de 2022

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O nome dispensa apresentações. Dona Ivone Lara nasceu em 13 de abril de 1922 na cidade do Rio de Janeiro e se tornou um ícone do samba, além de ser uma importante referência para as mulheres sambistas. Este mês, em seu centenário de nascimento, é necessária uma reflexão sobre sua trajetória e seu legado como uma representante feminina desse universo cultural.

Dona Ivone ficou órfã ainda muito pequena e foi estudar em um colégio interno, onde teve acesso a uma boa educação, fato que a ajudou ao longo de sua carreira como cantora e compositora. Teve aulas de música com as professoras Lucília Villa-Lobos, esposa do maestro Villa-Lobos, e Zaíra Oliveira, primeira esposa de Donga, que lhe indicaram para o Orfeão dos Apinacás, da Rádio Tupi, cujo regente era Heitor Villa-Lobos.  Assim, podemos afirmar que ela teve uma educação musical clássica, mas também popular: seu pai era violonista e componente do Bloco dos Africanos; sua mãe era pastora do Rancho Flor do Abacate; seu tio Dionísio Bento da Silva (que lhe acolheu após o falecimento de seus pais) tocava violão de sete cordas e fazia parte de um grupo de chorões que reunia Pixinguinha e Donga, além de ele ter lhe ensinado a tocar cavaquinho; seu primo, Mestre Fuleiro, foi um dos fundadores da Império Serrano em 1947. Enfim, sua família tinha uma vivência com a cultura popular e por meio desse convívio a artista esteve próxima desses nichos do samba. Casou-se com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, presidente da Escola de Samba Prazer da Serrinha. Era enfermeira e exerceu a profissão por muitos anos, além de ter se formado como assistente social. 

Após se aposentar, em 1977, passou a se dedicar exclusivamente à carreira artística, que era incentivada por seu marido. Este fato é comprovado em entrevista concedida à jornalista Mara Caballero, em matéria publicada no Jornal do Brasil (RJ) em 3 de setembro de 1977. Ao ser questionada sobre o motivo de ter parado de desfilar na avenida, a sambista respondeu: 

Por enquanto, perdi o gosto. Em dia de desfile, ele [meu marido] alugava uma Kombi só para me levar e trazer no final. Quem vai fazer isso por mim? [...] Ele me achava extraordinária. Éramos unidos, juntávamos o que ganhávamos e hoje temos dois filhos formados com curso superior. Ele me incentivava na minha carreira artística. Ria e dizia: “Minha mulher depois de velha é artista”.
(Dona Ivone Lara, Jornal do Brasil, 1977)

Contudo, vez ou outra ela precisava driblar o marido para conseguir concluir suas composições ou comparecer em apresentações. Em 1965, ela ingressou para a Ala de Compositores da Escola de Samba Império Serrano, se tornando a primeira mulher do grupo. Além disso, foi também a primeira mulher que teve o reconhecimento por compor um samba-enredo: naquele ano, o tema da Império Serrano era os “Cinco Bailes da História do Rio”, e o samba foi assinado em conjunto com Silas de Oliveira e Bacalhau. Todavia, para conseguir defender sua canção na quadra da escola e conseguir ser campeã, Dona Ivone precisou “tapear” seu marido com a ajuda de seus companheiros de composição, porque foi necessário se ausentar de seu lar: ao fim da noite o samba estava pronto e ela só chegou em sua casa “às cinco da manhã do dia seguinte” (Jornal do Brasil, 1977). 

Seu primeiro disco foi gravado pela Copacabana em 1970, e recebeu o título de “Sambão 70”. Ao longo de sua carreira foram cerca de 30 gravações entre LPs, CDs e DVDs. A pesquisadora Mila Burns (2021: 73-74) frisa que uma mensagem política foi sendo construída até mesmo nas capas de seus discos, principalmente em “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz” (1978/EMI-Odeon), “Sorriso de Criança” (1980/Odeon) e “Sorriso Negro” (1982/Warner), pois o modo como a artista foi representada nas referidas capas aponta para uma “posição de autoridade e destaque” de uma mulher negra que alcançou o sucesso. Segundo a autora, “a imagem de Dona Ivone Lara nesses trabalhos tornou-se uma inspiração e referência para as mulheres e pessoas negras do Brasil” (BURNS, 2021: 74). 

Capa do álbum 'Samba minha verdade, samba minha raiz', de Ivone Lara — Foto: Ricardo de Vicq / Reprodução

Dona Ivone se dedicava ao tradicional “samba de raiz”, sendo considerada uma “inconformista” se considerarmos o fato de que ela quebrou “padrões há muito estabelecidos na música brasileira e no meio dos sambistas” (BURNS, 2006: 71-72). Contudo, ela sempre explicou sobre as dificuldades para ser reconhecida como compositora de samba. Isso pode ser observado em entrevista concedida à pesquisadora Mila Burns, quando ela foi questionada sobre quem seriam suas sucessoras na música:

Uma que eu adoro é a Leci Brandão. Sempre gostei muito das melodias dela, mas acho que ela é muito prejudicada, porque o preconceito com as mulheres continua. Fico triste em ver uma pessoa como ela, que é reconhecida, que todo mundo respeita, não conseguir emplacar um samba-enredo. Acho que isso vai muito da escola, porque eu mesma enfrentei preconceito, no Império Serrano, em 1965, mas muito menos do que ela enfrenta hoje. Aquilo de o Império dizer que lançaria uma novidade, que eu era a novidade, isso não acontece mais hoje. Ela faz um samba bonito, chega perto de ganhar, mas na hora é sempre um homem que ganha, mesmo que o samba seja pior.
(BURNS, 2006: 98-99) 

Neste trecho é possível observar o reconhecimento da artista quanto ao meio machista em que ela estava inserida e como em sua perspectiva isso não mudou ao longo dos anos. Contudo, mesmo diante de tantas dificuldades é inegável que sua trajetória inspirou diversas mulheres de diferentes gerações. Dorina (2020), cantora e idealizadora do Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba, considera que o caminho das mulheres na música, principalmente no samba, é difícil e que isso pode ser “verificado pelo exemplo de Dona Ivone Lara”.

Nilze de Carvalho (cantora, compositora e instrumentista), que chegou a ser apontada como sucessora de Dona Ivone (BURNS, 2006: 102), fortalece a figura desta como uma mulher que teve um caminho duro para ser reconhecida como compositora. Nilze aponta a sambista como uma figura feminina muito importante no cenário musical, principalmente no quesito composição, além de ter aberto caminho para outras mulheres se consolidarem nesse gênero musical, enfatizando a mudança de posição delas ao longo dos anos dentro da própria dinâmica e organização do samba:

No início, felizmente ou infelizmente, era a mulher que agregava ali em torno da comida, porque as pessoas são pegas pela boca (risos). É o que Tia Ciata fazia ali e ela abraçava e defendia. Muito importante! Não era a mulher “músico”, mas era a mulher de força ali, que era dona do pedaço e isso é muito importante de se dizer. Depois, com o tempo, começaram as mulheres a ocupar o espaço já de uma outra forma: cantando e depois compondo. Temos que tirar o chapéu e reverenciar demais Dona Ivone Lara, porque ela teve essa árdua função de sair derrubando as barreiras nesse setor da composição. E aí ficou tudo um pouco mais fácil.
(Nilze de Carvalho, 21 ago. 2021)

Nina Rosa, cantora e instrumentista, narra um episódio que considera importante em sua história dentro da música, porque o seu primeiro contato com a história de Dona Ivone Lara lhe causou um grande impacto:

Ainda na escola eu comprei um livro do Sérgio Cabral (pai) – que faz parte de clicks na vida que eu não esqueço até hoje. Eu comprei o livro de história do Sérgio Cabral em que ele contava várias mini-histórias sobre sambistas, sobre episódios de sambistas, e tinha um episódio que falava de Dona Ivone Lara: como Dona Ivone Lara se tornou a primeira compositora da Escola de Samba Império Serrano, a primeira mulher compositora da Império Serrano. Aquilo me chamou muito a atenção, porque eu tinha uns 17, 18 anos e aquele fato me chamou muito atenção. Eu marquei essa passagem no livro. Nossa! Uma mulher... Eu achei que ela fosse uma rainha! Então eu sempre pensei em Dona Ivone Lara como uma [precursora]: ela chegou e se colocou como a primeira ali. Organicamente eu fui me identificando com essas mulheres que faziam aquilo, que faziam aquela coisa daquela forma.
(Nina Rosa, 30 abr. 2021)

Os relatos destas três sambistas, que atuam em diferentes nichos do samba, demonstram o quanto Dona Ivone Lara marcou e inspirou gerações. Sua história marcada por lutas e vitórias fez com que o seu nome fosse escrito no panteão do samba, ao lado de importantes figuras desse espaço cultural e musical. Em momentos díspares, e através da narrativa de outras mulheres do samba, é possível observar a existência de uma reverência à detentora de um importante legado: Dona Ivone Lara, a Rainha do Samba.



Bruna Aparecida Gomes Coelho é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e realizou as entrevistas com as sambistas Dorina, Nilze de Carvalho e Nina Rosa para sua pesquisa, na qual discute a memória de mulheres do samba. Contato: bruna.agcoelho@gmail.com.


Fontes Orais
Dorina. Entrevista concedida a Bruna Aparecida Gomes Coelho. 7 out. 2020.
Nina Rosa. Entrevista concedida a Bruna Aparecida Gomes Coelho. 30 abr. 2021.
Nilze Carvalho. Entrevista concedida a Bruna Aparecida Gomes Coelho. 24 ago. 2021.


Fontes Documentais
Jornal do Brasil (RJ) - edição de 3 de setembro de 1977


Acervos Consultados
IMMuB
Dicionário Cravo Albin
Hemeroteca Digital


Referências
BURNS, Mila. Nasci para sonhar e cantar: gênero, projeto e mediação na trajetória de dona Ivone Lara. 2006. 125f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, 2006.
_______. Dona Ivone Lara: sorriso negro. Tradução Alyne Azuma. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Cobogó, 2021.

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