Colunista Convidado

Douglas Germano desafia o coral dos contentes em “Escumalha”

sexta, 19 de julho de 2019

Compartilhar:

Só para citar alguns, de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini a Oswaldinho da Cuíca, Geraldo Filme, Pedro Caetano, Blecaute, Carlinhos Vergueiro, Toquinho e Germano Mathias - não desfazendo de ninguém - São Paulo é terra de bambas também. Como outro ilustre Germano, o Douglas, filho de José Germano, percussionista do conjunto Acadêmicos da Guanabara, apesar do nome, assíduo da paulicéia noturna de casas como Urso Branco, Sandália de Prata, E.C. Pinheiros, e dos carnavais do Espéria, Tietê e Paulistano. Aos 12 anos, Douglas Germano já estava enturmado na escola de samba Nenê de Vila Matilde, onde participou do naipe de repiniques, de 1982 a 1990. Foi seu “marco civilizatório particular”, como ele define:

“Nos ensaios de quarta-feira da Nenê de Vila Matilde, aprendi o que utilizo até hoje em minhas composições. Os ensinamentos de Seu Nenê, o zelo com as afinações de surdos, o cuidado com a batida de caixas, a malandragem e o swingue dos ritmistas dos surdos de 3ª, os segredos guardados entre os iniciados, o orgulho e a autoestima, a seriedade com que tudo era tratado”. 

Aprendeu a tocar cavaquinho escutando discos e vendo outros músicos nas rodas de samba. Começou a compor em 1986, e cinco anos depois, emplacou “Vida alheia” (com Carica) nas vozes do grupo Fundo de Quintal. Estudou violão com Ruy Weber que o apresentou ao sax/flautista João Poleto, responsável por sua participação em grupos de teatro como músico e autor de trilhas sonoras. Integrante do projeto Mutirão do Samba, no centro paulistano, conheceu o violonista/guitarrista e compositor Kiko Dinucci, que o levou para o Bando Afro Macarrônico, atração do mitológico bar Ó do Borogodó. Com Kiko (do grupo de vanguarda Passo Torto, ao lado de Rômulo Fróes, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos) gravou o primeiro disco, Duo Moviola. Em 2011, estreou solo no digital “ORI” (Bac Discos), finalista do 23o Prêmio da Música Brasileira, na categoria “cantor de samba”. No estupendo álbum “A mulher do fim do mundo”, Elza Soares gravou sua composição “Maria de Vila Matilde”, música do ano no Prêmio Multishow, de 2016, indicada ao Grammy Latino. No mesmo ano, respaldado apenas por violão, cavaquinho e caixa de fósforos, Douglas disparava o segundo solo, “Golpe de vista”, indicado ao Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). 

Seu terceiro título, “Escumalha” (Boca de Lobo), resultou de um processo de dois anos de trabalho entre pesquisa, composição e gravação. Reúne dez composições de Douglas, também responsável por violão, voz, arranjos de base e direção musical. “Valhacouto”, um samba de ritmo ciscado, no estilo do violão batuqueiro de João Bosco, inaugura fumegante aliança com o heráldico parceiro do mesmo João, Aldir Blanc: “Sangue e mentiras/ vitória da insensatez/ crianças matando/ imitando tiras/ vale da morte, estupidez”. Com Kiko Dinucci, DG divide “Vil malandrão” (“eu tombei na mata, queimei na praça, sumi no mar/ eu fui degolado, bombardeado, voei pro ar”), com tamborins em riste e a costura do cavaco de Henrique Araújo. Titular da flauta incisiva que rodopia por várias faixas (algumas delas arranjadas por ele), João Poleto assina com o solista “Insignificâncias”, um samba mais tradicional, cerzido pelo 7 cordas de Gian Correa, de letra influenciada pelo poeta cuiabano Manoel de Barros.

O samba de ritmo mais vertiginoso e entrecortado do disco, o fuzilante “Babaca”, crivado de aliterações (“tu tapa a cloaca/ que a caca, de ti, se espalhou”) ainda é adensado pelo trombone de Allan Abbadia. Adornado por um coro que funciona quase como jogral, abordando o país dos segregados numa linhagem literária paulistana, que vem do modernismo de Alcântara Machado (“Brás, Bexiga e Barrafunda”, 1928) à crueza de João Antonio (“Malagueta, Perus e Bacanaço”, 1963), Douglas Germano descerra o cenário nada maravilhoso na faixa título: “É a falha, é a tralha, é a calha, é a malha do chão/ o escangalho no peso do malho que forja a nação”. O roteiro também visita o afro percussivo “Agbá” (“ê Adaguê, ê Elebó/ Aluavai, ê Tiriri, ê Marabô/ eê Laroyê”), desacelera na “Marcha de Maria” (a composição mais antiga da safra, de 2000) e atropela no xaxado embolada “Ratapaiapatabarreno”“A língua de quem fala/ quem ouve não tem/ a língua que não ouve/ não fala também”. O ronco sambado das cuícas (de Rafael Y Castro e o próprio Germano) emoldura a definitiva “Chapa”: “Vem a bolha, a fratura, a torção/ cervical, inguinal, vai a mão/ vem o corte no ombro mais forte/ que opõe toneladas ao chão/ o açoite é a paga do país”Douglas Germano agita a escumalha e, mais uma vez, desafia o coro dos contentes.

“A brasilidade que transborda das canções deste trabalho/gira de macumba é tudo aquilo que o Brasil oficial e colonial odeia”, prefaciou no encarte o escritor e jornalista Luiz Antonio Simas.

Por: Tárik de Souza 



Comentários

Divulgue seu lançamento