Na Ponta do Disco

E meu coração se deixou levar: as canções de Paulinho da Viola

por Eliete Eça Negreiros

segunda, 21 de novembro de 2022

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Foi papai que me mostrou pela primeira vez Paulinho da Viola. Era um fim de tarde, estávamos na cozinha, ele ouvindo seu radinho spica – que ele nunca largava - e me chamou para ouvir um samba, dizendo assim: “Presta atenção, minha filha, este moço é muito bom”. Em silêncio, ficamos os dois ouvindo aquela canção, encantados. O moço era Paulinho da Viola e a música Coisas do mundo, minha nega. E, parafraseando Paulinho em Catorze anos, “o meu pai tinha razão”. Era o ano de 1968, ano de efervescência política e cultural no Brasil e no mundo. Eu tinha 17 anos, sabia pouco da vida, menos ainda da política e sentia que o mundo me chamava, “As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”. A canção entrava certeira em meu coração e expressava aquilo que eu sentia e não sabia dizer. Foi uma iluminação.

Paulo César Faria, Paulinho da Viola, nasceu no Rio de Janeiro, em 12 de novembro de 1942, teve uma infância feliz e desde menino gostava de ficar sozinho, quieto e contemplar o mundo. Seu pai, César Faria, era um grande violonista do choro, integrante do Conjunto Época de Ouro, que acompanhava Jacob do Bandolim. Paulinho conta numa entrevista que sua relação com a música começou na infância, nas rodas de choro organizadas por seu pai, das quais participavam Jacob do Bandolim e Pixinguinha: “Desde menino comecei a observar, estudar e tocar violão e eu não era do samba, não: era do choro mesmo”. Nos anos 60, Hermínio Bello de Carvalho levaria Paulinho ao Zicartola, reduto do samba carioca, onde as pessoas iam para ouvir Cartola, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, enquanto saboreavam os deliciosos quitutes de Dona Zica, mulher de Cartola. Foi lá que Paulinho recebeu seu primeiro cachê de músico, das mãos de Cartola. Foi nas rodas de choro, na casa de seu pai, e nas rodas de samba, no Zicartola, que Paulinho da Viola iniciou seu brilhante caminho musical.

Compositor filiado à mais alta tradição do choro e do samba, com Sinal Fechado (1969) Paulinho da Viola surpreenderia a todos e venceria o V Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Digo que surpreenderia porque esta é uma canção muito diferente dos sambas que ele costumava compor. Não era samba, não era choro. Tinha uma sonoridade tensa, dissonante. Sinal Fechado expressava o clima angustiante dos habitantes da cidade moderna, pessoas que se querem bem mas que não conseguem se encontrar a não ser no breve instante em que o sinal está fechado e, em seguida, quando o sinal abre, desaparecem na multidão. Sob a batuta do tempo apressado das máquinas, o amor e a amizade não encontram lugar na cidade moderna. Paulinho explicou que este clima angustiante foi criado, musicalmente, pela adição de uma segunda menor a todos os acordes da canção. 

Depois, todos seríamos arrebatados pelo samba Foi um rio que passou em minha vida (1970).  O Brasil inteiro cantou esta canção. Assim como o coração de Paulinho se deixou levar pelo amor de sua Portela, o meu coração e o dos brasileiros também se deixou levar pelos sambas de Paulinho. Era o início dos anos 70.

O tempo foi passando. Eu sempre quis entender o sentido da vida e as canções do Paulinho dialogavam com esta minha inquietude. As canções me ajudavam ao menos a saber que eu não sabia...  As eternas questões. Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido de tudo? Qual o melhor caminho a seguir nesta existência? Alguns de seus sambas falam desta busca existencial. Lembro que comprei um LP de Paulinho na Breno Rossi, uma loja de música que havia no centro de São Paulo, o disco que tem Para ver as meninas, um dos sambas que adoro e que levam a gente a meditar sobre nossa condição diante do infinito cósmico, este abismo pascaliano. Fiquei totalmente encantada com este samba, com sua transcendência, com o apelo ao silêncio para poder tocar o infinito: “Silêncio, por favor/ Enquanto esqueço um pouco a dor do peito”// “Hoje eu quero apenas/ Uma pausa de mil compassos”. Eu ouvia o disco o dia todo. “Porque hoje eu vou fazer/ Ao meu jeito eu vou fazer/ Um samba sobre o infinito”. Naquele tempo, eu tinha uma vitrola na sala e a música se espalhava pela casa toda. Paulinho da Viola conseguia traduzir o intraduzível, dizer o indizível...  Estão neste disco também Num samba curto e Filosofia do samba: “Mora na filosofia, morou, Maria?”, perguntava Paulinho,  cantando Candeia. E ainda havia a beleza sinistra e estranha da sofisticada valsa em parceria com Capinan, Vinhos finos...cristais. ”O amor doente entre os dentes da saudade”.

Foi por esta época que conheci meu grande amigo Arrigo Barnabé. Arrigo adorava o LP A Dança da Solidão (1972). Perguntei a ele, para relembrar, se gostava de alguma música em especial. “Eliete, quase tudo ali... Duas horas da manhã, claro Dança da solidão, obra prima, Meu mundo é hoje, Acontece... Acontece era um acontecimento mesmo, uma surpresa, né? Falso moralista, Ironia...”.  Paulinho da Viola além de grande compositor é grande intérprete de sambas maravilhosos de Cartola, Candeia, Valzinho, Nelson Cavaquinho.

Crédito: Divulgação/Léo Aversa

As canções do Paulinho da Viola espalham poesia, graça e sabedoria na nossa alma e no mundo. Em Vida, parceria com Elton Medeiros, ele canta: “Mais não se pode dizer/Nem eu, nem ninguém/ Você é quem deve colher/ Depois de semear também/ Você é quem pode rasgar o caminho/ E fechar a ferida/ E achar no seu justo momento a razão/ De tudo aquilo que chamamos vida”. Com grande beleza e delicadeza, o sambista ensina a alguém que está procurando o sentido da vida que é ele que deverá encontrar o sentido. Ninguém pode viver por você. Como não lembrar de Walter Benjamin que ensina que o narrador é aquele que sabe dar conselhos? Aqui, é o poeta que faz este papel.

Paulinho fez 80 anos. O tempo acelerou, as pessoas estão ensandecidas, a pressa se apossou de suas almas. “Me perdoe a pressa/ É a alma de nossos negócios”. E Paulinho continua no seu tempo, no seu ritmo, com samba, poesia e serenidade. E muita elegância. Numa cadência gostosa, sem pressa. Qual é o mistério desta tranquilidade? Qual o mistério deste artista que mantém seu tempo, no meio da sinfonia alucinada do mundo contemporâneo? Como ele cria esta obra maravilhosa, um dos mais belos marcos de nossa brasilidade e de nossa humanidade? Qual o mistério desta perfeição?  É ele mesmo que explica, que diz, não dizendo: “Quem quiser que pense um pouco/ Eu não posso explicar meus encontros/ Ninguém pode explicar a vida num samba curto”.



Eliete Negreiros nasceu em São Paulo, em 1951. É ensaísta e  cantora de música popular brasileira. Fez licenciatura, mestrado e doutorado na Faculdade de Filosofia da USP.

Com seu disco de estreia “ Outros sons” (1982) ,produzido por Arrigo Barnabé , ganhou o Premio APCA de cantora revelação. Depois vieram “Ângulos-Tudo está dito” (1986), “Canção Brasileira- a nossa bela alma” (1992), com o qual ganhou o Prêmio APCA de melhor cantora de música popular brasileira e “ 16 canções de tamanha ingenuidade”( 1996).

Em 2012 lançou o livro “ Ensaiando a canção: Paulinho da Viola e outros escritos”, em 2016 “ Paulinho da Viola e o elogio ao amor” e em 2022 “ Amor à música, de Cartola, Paulinho da Viola, Cortázar, Nara Leão, Rogério Sganzerla…”.


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